terça-feira, 15 de março de 2011

Odes de Mitilene - Orlando Neves

ODES DE MITILENE (texto integral)
No vazio, o eco vagueia em vão
e junto dos mortos se cala.

Erina de Rodes
A doçura do amor ultrapassa todas as coisas.
Quem não conheceu o beijo de Cípris
não sabe distinguir, entre as flores, as rosas.

Nossis de Locres
Morro na seca areia, entre os juncos,
sob o traiçoeiro recuo das águas.

Aniteia de Tegeia

Inocência, terna virtude,
minha inocência, onde estás?


Amei-te, minha Átis,
quando nos meus verdes anos
virgens eram as flores...

Safo de Lesbos



Ilesa do tempo, cuidas, Safo, que o tão pouco
que a vida dura, o nosso destino consome
nas primeiras chamas do fogo e o que resta
é o olhar sem peso, permanecente barro
de que fazes a rebeldia ou com que matas
a fragilidade do sangue. Cuidas, Safo, que
nem o erro nem a verdade existem e, nua
sobre as heras, és, enfim, consciência
dos deuses, eterna pureza do exemplo livre,
pele sobre pele, de neblina. Trabalhosos
e vazios dias vives, para apenas respirares
a usura da saudade e nos sinais da pedra
ficarem o teu brilho ou o movimento
perfeito das estrelas na tua carne fecunda.
Cuidas, Safo, a tua beleza como monumento
perene e único na deserta água, na
infindável planície insone ou no rosto
imortal do cume frio das montanhas.
Cuidas, Safo, que o tempo é o teu espaço
e o curso visível da luz a necessidade
da ilusão. Muito mentem os homens
mas mais mentem os deuses e são eles,
palavra sobre palavra, que nos banquetes
da aurora, anunciadora da noite, receiam
olhar-te e temem a tua parte nos aromas.
Quando mais nada lhes resistir, cuidas,
Safo, que, em mil máscaras, vaguearás
pelo seu medo e sofrerão do teu olhar,
neles, ferida, estrela e ermo, a cuja
vontade não fugirão. Cuidas, Safo, que
fala a tua boca da morte do ar, da terra,
do fogo e da água, os quais, depois, nova
combinação estabelecem para ressurgirem
ávidos e jovens, moradores no tempo como
um beijo.
Esquece, Safo, o teu ardor austero, o teu
amor da água, a tua ânsia de abandono,
a tua serena alma, o puro cisne, a seda
vã, o vaso amargo, os obscuros mortos,
os pássaros estes, as ervas raras com que
sustentas tudo o que, alheio de ti, te nomeia
efémera para sempre. Do nada, nada nasce,
que jamais a teus olhos a noite venha
e nunca a mentira do futuro se teça
da desejada memória. Obriga-te, apenas,
a respirar-me, segue a cor das algas
sob o relâmpago, ama a vibração das
corças juvenis, coroa-te de açafrão e
lírios, bebe do teu corpo como de um anjo
nocturno, recebe todas as notícias
depois de irreparáveis, apaga nas tuas
pernas, continuadamente, o sonho
de outro mundo a vir, e vive no teu
corpo como num ócio de nuvem. Sê
e sê – o tão pouco que é ciência, o
tão curto que é sentido.




Talvez o deserto, a amantíssima primavera muda,
transparecendo no meu sangue, nocturna água,
nesta paz desesperada, nesta náusea de ronda,
me traga a tranquila alba redentora, a harmonia
cerrada no espesso véu da indecisa luz
do silêncio. Neve tão infantil como a primeira
sede, não te seguem meus olhos. Entardece
o movimento e, como a tarde que cai, a sombra
desnuda a imagem da pedra, a pujante verdade
de desafiar os deuses com a mais frágil palavra.
Avanço ausente, o braço movo, a vivíssima
fome me assombra e sou para sempre
a minha mão suplicante, emulsão do tempo.
Talvez a morte que me dás nada interrompa
porque não sou já o que os meus olhos vêem.




Mãos mortais de piedade, pão segado
de desespero, eis Safo, a que nega
e afirma, acesso do amor, surpresa
de ser, horror da desgraça. Por
secretos caminhos avança, nenhuma
verdade a fixa, nenhuma contingência
lhe cerra a passagem. Sobre o grito
fúnebre das cassandras, Safo eleva
a palavra livre,
o eco eterno da sua nudez,
inocência lisa.




À nossa raiz descerá
a chuva. Fique o castigo




dos deuses cerrado no vão
entre os nossos corpos unidos.
De seu olho escasso escorra
a impotência.
Que sua eternidade é
tão perene
como o nosso humano instante.




Pensemos, Safo, com palavras que desconhecemos.
Alguém falará por nós para, das coisas reais,
fazermos humanas coisas – só a sua ausência
nos retira a razão de existirmos. Cumpramos
a culpa para que os deuses nos querem, guardemos
o seu segredo impotente – esse de desconhecerem
o prazer ou a dor porque só do nada lhes vem
a frágil essência divina.
A noite livrou todos os ventos, desmediu o vazio,
ensina-nos o que os pássaros pensam do sol.
É no fio fino sobre o abismo tenso que tudo
se torna mágico e, ofuscante, brilha o olho
único do mistério – lá onde não acedem os deuses,
onde a liberdade fulgura no rasto dos peixes
acesos, ela, a reveladora da vida,
o ininterrupto instante de passar.






A
ssumamos o corpo e o
prazer, bebamos no elmo
de bronze o vinho e os
cheiros do fogo.




Move-se esta mão porosa, ora lívida,
ora infinita, ora quente, ora efémera
e é como se existisse profunda, quase
humana, se não imensa, vibrante,
quando a lua arde nos teus olhos
nocturnos. Move-se esta mão e a luz
cai nas águas, seda amarela
sobre o teu corpo calado. Move-se de ver
em forma de olho, flor ou óleo
e respira a terra, persegue, cega,
o lábio luminoso, de puro cansaço
dorme, ferida, ascende, pássaro
largo e lento, ao meio dia das rosas
frescas ou à solitária estrela
na vasta noite de luto. Move-se
a mão, pele secreta, explosão
interminável no escuro sal
da onda, colore-se de cólera
ou fulge como um eco no osso
débil, nuvem de pó no macio peito,
último prodígio da irrepetível
memória do gesto cadente.
Move-se a mão de viver o
puríssimo orvalho das folhas
brandas e mansas e, ao tacto rápido
do claro pão é um verde riso
na boca das crianças, é um vento
de musical sopro no remoto
silêncio da indizível dor.
Move-se a mão, piedosa, brilhante,
intacto matiz dos frutos, fixo
relâmpago do oriente, move-se de ver
praias que já foram tranquilos
dorsos de ouro, hastes de trigo,
forças cruéis, desmedidos deuses.
Move-se a mão, amor da água
e da viva árvore, sobre o teu corpo,
porto vazio das húmidas pedras,
pálido beijo que se criou livre
e hoje é a cor do sangue no colo





da ave traída pelo tiro. Move-se
de ver e viver, saudade que se
esvazia para além do explicável,
cio expulso do corpo amado,
mão mineral em que a memória
jamais amanhece.




Só muito depois pensamos. E vemos.
Essas moscas breves zunindo. O tempo
de viver. Bela e pálida Safo, a calma
asa rola nos seus olhos, com pontas de ouro
brilham os cedros, a mão, lâmpada erradia,
desenha o peito, os sinais da noite
descem nas suas pálpebras de ébano.
Pensamos mais do que a curta vida
que, ao arbítrio dos deuses, vivemos.
Todo o sonho é sem domínio, doença
que dura além da idade. Como quem
o tempo cria, antes e depois de sermos,
não medimos a vida. No olho do pavão
que debica o sal do corpo de Safo,
a velhice da poeira
entra na boca dos mortos,
substância do sonho,
inalterável outra natureza.




Eis o inevitável ímpeto do ruído,
forjador do ferro que, para além do tédio,
passa como um modo de reter o tempo
nas súbitas brisas da solar, imóvel





secura. Fatal lume que alucina
os mansos animais, se houvera estrelas,
assim me sentirei no arenoso mar,
purificada posse que me consome.

Mirabilia de gritos nas sombrias
montanhas ou nas douradas nascentes,
vindos de Safo a meus olhos regressam,

qual lâmpada de tristeza em infinita
vibração. Nada cintila no precário
despojo. Que minha aparência arda plena.





O primeiro fogo vela este claro azul
onde o coração de uma ave
é no meu corpo compasso de cadência.
Chegasse a luz e ele saberia
quão breve é a morada do sol
nas mãos abertas ao espaço,
limpo de tudo o que foi dito,
a eternidade da admirável calma
do tempo para viver. Outra é,
além do fogo e do azul, da linha
turva do voo, a inocência que demora
no odor da névoa ou no olhar manso
do falcão pousado no cume
da duna. Como o pão que se come,
sob a magoada música do vento,
no rebordo de uma pedra, quando
o verão cai, entre as folhas e o pó,
tu existes como se o tempo fosse
presença pura do erro de sermos
palavra viva na terra núbil.





Sobeja em mim o teu corpo, sumo
oculto da água, num turbilhão voam
os teus dedos sobre os poros de ar
da carne que estremece, grandes
e pesados são os trabalhos da boca
perfumada, com os olhos da terra
vês a terra, todo o movimento converge
para a unidade que da noite provém.
E é pelo fogo que na água me dissolvo
e assim morro e assim morres,
na clâmide purpúrea da areia de ouro.
Do nosso corpo único, fugitivo dos deuses,
vagabundo errante dos nevoeiros,
discordes e divisíveis, virão
outras vidas, outros nascimentos.
Ó Safo, a que do céu e terra se nomeia,
a que é acto e água, reflexo do fogo,
não temas a morte – nenhuma parte
de nós está vazia.





Oferece-te o beijo a brevidade do orvalho.
Assim o doce se apercebe do doce e o amargo
é o seu próprio isolado instante que movendo-se
descansa no teu nome escrito em todas as paredes
desta cidade marítima. De água em mágoa
mudado, um sorriso interminável reside, como o ar,
na sombra da lua, na prata impolida dos teus olhos
negros, refúgio onde jamais a noite repousa.
Tenso é o arco que a flecha dispara, tensa é
a lira que os dedos manejam, grande é a harmonia
que do silvo e do som na luz irrompe.
Compreende, Safo, este amor e ódio, esta paz
e guerra, tão breves que em nós permanecem,
tão eternos que logo se dissipam. Tudo nasce
do que difere e luta e tão frágil é o tempo





como frágil a folha, tão aguda a dor como rápida
a palavra, tão quente o fogo como leve o sonho.
Assim o doce se apercebe do doce e o amargo
do amargo e assim se unem à respiração
ardente dos nossos corpos, que sempre começa
onde sempre acaba, qual círculo exacto
que, rítmico e fluente, a si se cerca e em si
se oculta.





E o desejo de amar e o desejo de mar
no seu mais belo canto Safo cantava.
Oh, quanto no meu coração tarda
o que o seu canto louvava.




Em toda a parte a vejo, quando o dia
esmorece ou se levanta a luz, meus olhos
a seguem, fontes que secam, no seu regresso.
Não me pergunta Safo se nas fragas da ilha
estão calmas as aves, se nas escarpas
agonizam os cães da praia, se o beijo
das abelhas amadurece os figos ou
se cresce em mim a dolor da ausência.
Vem longe o meio-dia. Ela me oferece
o abismo e destece a sombra
das horas sedosas, das águas vazias
de quem acha outro o mundo, fechado
o desejo. Fica o tempo solene, crivo
do verão, na mais longínqua altura
se fia a casa que urdi, são de luz
e trevas as bodas crispadas, são de flechas




de sol, degraus de ondas, ciências de sal,
sangue e mercê, substância e peso,
prazer de todos os caminhos pelo mar
e da morte. Tudo em mim cai e, ante
meus olhos, Safo me inventa a vida.




Magoados aromas da noite que passando
por estas tranças de oiro, ides urdindo
prodigiosos enganos, persegui, nas águas
desavindas, o desenho nu do seu corpo,
o disfarce errante em que Safo preserva
o ébrio fulgor do seu veneno. De amor
me vence o servo coração, de excesso
consentido me envelhece as mãos,
de feno seco faz a minha língua rara.
O seu colorido pescoço cintila,
o seu seio, variado de sombras, me revela
o imóvel barro, os seus braços, cardos
florescentes, são inflexíveis e fúnebres
archotes, o seu cheiro verde me desvela
a oculta brisa na semente das maçãs,
as suas pernas, duras e ávidas, verberam
o que comigo arde, a lenta embriaguez
em que me consumo.
Por estes magoados aromas da clara noite,
não vem Safo, aquela que se limita
na sua cor, aquela cuja corpo é formado
das quatro raízes do mundo, aquela em que
as estrelas se ouvem e para sempre duram.
Ai de quem solitário bebe e solitário apodrece!
Como o deus dos deuses, sem se mover,
no mesmo lugar permanece.





Um verme ou um fruto morno,
o corpo de uma noiva, o labirinto
das veias, os filhos de uma alta noite,
o bronze de um sino na memória,
a guerra, os vários acasos, as brasas
da peste na luxúria do mar, um rasto
de floresta no tacto dos olhos, o longe
na palma das mãos, entre tantos rumos
do horizonte uma semente de areia,
o torso de uma árvore estéril, a trança
das teias na água dos rios, o cego instante
aceso na rijeza da carne, o fio dos cabelos,
amêndoas de sede, um animal insone
de ígneos negrumes na pele, a soma
do silêncio ao ritmo das chuvas,
um escombro no sono aéreo, as cruas
saudades imensas, um nome claro,
uma imprevista mágoa, uma asa
apodrecida na claridade da aurora,
um sonoro galo na corda da infância,
os músicos de pedra no muro levantino,
um gemido de espuma na boca
seca da água assombrada, um osso
perdurável na brancura do limo,
raízes, flores no lugar das faces,
o odor do voo dos pássaros, uma treva
densa de tudo o que não foi, os pedaços
do corpo no seu tremor e o consenso
absoluto de um grão de ar,
limites do teu corpo que existem
para que eu seja livre e em mim dure
o lugar seco da terra onde os teus olhos
são um gosto de areia ou o brilho
da morte, maestria do sol, senhor
de um céu sem vozes.





Se contigo ardo, Safo,
se todas as coisas provêm
da noite, seremos a chama
da eterna beleza.




Em nenhuma estranha pontualidade
se faz nula a pausa. Como correm
os tempos que mudaram, assim longínquo
fica deste ser inevitável o prazer
de na serena alba te possuir, como
a luz ao vento. Conserva, Safo,
a constância do álcool, obstina-te
do fogo, silencioso monumento
da nossa fugaz sombra sob o sol ocre.
Nesta manhã imponente de rumores
é a aflição do vazio o que sobrevive
ao desejo de nós, aos corpos disformes
que subitamente somos. Depois do voo
pintado nos vasos azuis, depois de
vibrante e vivo por nos ter passado
o denso incêndio doce do amor,
sê breve, conhece a cor, reveste o linho
das sedas e dos brilhos, da áurea
mediania que continuaremos a ser.
E ouve o livre pássaro branco vogando
nas águas nuas: sou o ar, sou a morte.




Como funda gota de cera no flanco
do lesto gamo,
sequestra-me, Safo, no teu rijo seio.




Fica, quando escrevo, no céu branco,
um eco vago dos teus braços lentos.
Campos pálidos de água
devolvem-me o chão fresco
onde cavalos vibram como juncos
e a velhice das raízes consome
as flores vorazes.
É um eco vago de lassidão e calma,
silêncio que desce pelas veias acesas.
A ilha adormece na lua rosa
e, como um espasmo, cheira
à poeira cálida onde almas e águias
são sinais da noite, cinza das bocas.
Fica, quando escrevo, um sopro remoto
do teu corpo, escura perdiz
entontecida da fuga,
fruto de mulher, pintura na pedra.




Estala a brisa nos campos de uvas,
a vibração de um sino fustiga
os cães esfomeados.
Intacto no ar o teu perfume salobro
agita a noite na casa insana.
Há um silêncio comum no teu lábio maculado,
a poeira da submissa floresta corrói
o teu riso glabro.
Nasceste do desastre entre a aurora
nos olhos calcinados dos leopardos
e a saciedade do fôlego na boca
medonha dos promontórios.
Esta ilha, inesperada paragem
do mistério, bolha de terra
sem retorno, crueza do lume,
festa, jogo, papoula de areia,
inundou de máscaras o teu nascimento.




Safo, a dos ombros de cobre,
a que se mede com os deuses,
imagem móvel da eternidade.




Ser a pomba ou o cavalo no bosque
de macieiras onde espera e anoitece
o teu terso corpo de deusa rara.




Vai-se a velida pelo triunfal vento,
às irrepetíveis águas das nocturnas marés,
vai-se, assim, experiente lua de ébrios
dias, o liso ventre respirando o sopro
tépido das folhas, tal um líquen de sentidos
deixado a arder, ruído lento, nos meus olhos
doentes. Mas, com ela, na veia das mãos,
vai, fluxo de silêncio, a minha voz
que nas suas pernas se perde e pelos braços
às mais altas nuvens vermelhas ascende,
onde choram os pássaros. Safo assim vai,
impetuosa corrente de carmim, por entre
os freixos suspirando, pomba escrava
dos aromas, rescendendo, suas coxas
de areia na riba das águas banhando,
as unhas de sal a coroa das dunas
dispondo, evadida de si e da sua origem,
tardada ao encontro do espanto
que lhe dá-a-ver a saudade fria
no meu corpo demorada. Nesta solidão
que me gasta, assim vai a velida,
deusa azul, trágico marfim, oscilando




ao ritmo de um eco de treva, subitamente
abrasado. É Safo a luz que se inventa
e ilumina a sua fonte, irradiante
relâmpago sobre as húmidas poeiras,
fulgor que me cria, quente vento,
raiz solana.




Oh, apagar-me no teu peito suavemente
enquanto nos teus olhos leio
a respiração do tigre.




No verdor de março, pássaros chegam,
puros beijos. Às pedras fumegantes
colam-se, purpúreas, algas. No cimo
cinza das ondas vem a voz redonda
de Safo, fundo e fonte do tempo
que na praia a espera.
Seu ócio felino derrama-se pelos
pequenos seios, no riso dourado
dos seus olhos escuros, nas vivas
veias dos braços enxutos, no branco
suspiro do seu sexo, brasa de prata.
Do seu seio até às coxas se enredam
os astros, um galo negro canta
nos lívidos cabelos, enchem-se
de anjos os seus dedos, limpos de todo
o mal, de tão destra, sua boca arde, dócil,
nas hastes rugosas do trigo.
Nascida da pedra informe, ela vai,
desafio trágico, pelos sentidos inquietos,





perturbar os deuses, povoar a natural
noite, a triste e fatal noite completa
do mundo.
Conhece Safo o desejo ou apenas o quer?




Nada é glorioso, nem a solidão
absurda. Só a memória permanece,
para, em cada carícia,
ser outra.





Procura, alma, a água que te transporte
ao revolto ar de que nasceste. No sereno
pouco ou na mansa luz, não correm os dias
iguais, a teu mando, nem das mudas coisas
emana o sopro divino que, número perfeito,
a nós nos tome.
É Safo a vida, este efémero instante
em que a agonia eterna, eterna se deslumbra.
É Safo o desejo, esta firme vontade
que nos muda o corpo, ora tomado, ora
liberto, jamais dissonante ou cativo.
Por estes campos amarelos, estas praias vazas,
este sol nenhum que nos cinzela as ancas,
a harmonia da pele e o rumor mudo da palavra,
arde, alma, ar, procura a tua medida.





Abro a voz. Este é o meu último cálice,
lava e gelo no peito sangrante. Grito
pelas mãos. Esplende, ávido, o sol que se move
no corpo nu de Safo. Suplica a cor

da tarde, o fim dos limites no silêncio
cortado pelo motim dos ventos. Acende-se
a febre dos ecos opressos no incerto
nome por que clama agora a minha voz.

Como nos dias de novembro, a neblina
fecha a entrada da terra. Sobre as árvores
já não ouço as aves em fuga. Das rosas

que imagino, exala-se um rumor secreto
que, em seu louvor, fulgura. O voo da memória
de mim foge ou do sonho que a disfarça?




Veremos a vida para além
do prodigioso édito dos deuses.
Ser relâmpago ou respiração,
brisa imperecível sobre o rumor
das árvores, errante praia
das aves em voo,
eis o que Safo me ensina
quando com a alma sonha,
no gozo do corpo enlouquece,
à superfície da natureza,
pensa. Pelo rio mudado
do mundo, vamos durar no dia,
o invariável dia de todos os dias
e negar aos deuses a sua
diferença.





De que consumida lenha
faremos o verão novo?
O que nos falta, inexiste,
o que vemos, fomos.



Morrerão antes de mim as estrelas,
as dóceis plantas movidas pelo vento,
o instante que foi canto, o eterno
que nos vazios espaços habita?

Aceito a sombra, a emoção que me fere,
a pedra no centro do coração,
o fascínio da voz de Safo em mim,
suplício em que assoma a morte, a ilesa alma.

Não renasce das cinzas a paixão.
Não vivo, não vejo. O que subsiste
do céu e tudo o que é posto a meu lado

se cala. Não tem nome a pedra. Vogo
no topo da água, pedaço de um corpo
difuso no destroço das estrelas.



O grande bico do deus, a sua escura pálpebra
nos contemplam, Safo, na insone madrugada.
Trememos à sua chegada. Mas, sob os sombrios
loureiros, com ternos olhos vemos os nossos
corpos despedirem-se da noite sagrada
em que tiveram a sua parte nas águas frescas
dos rios e nas vesperinas rosas do poente.





E aos deuses que mentem, à última cinza
das suas asas, opomos o rigor e o lume,
o vivo desejo com que, ilimitados, geramos
a vida e nela exercemos o ansiado poder
destruidor. Está já pronto outro vinho,
outra maçã rubra. Sobre a mesa de pedra
fria, fulguram os fulvos pães e as brônzeas
taças. Deslumbrante é o vento que recebemos
no rosto, pura transparência que nos oferece
o seio e em nós procura o harmonioso cansaço,
o coração final.


 

Orlando Neves , Poesia; 1º edição, 1990; 2ª edição, 1990; 3 ª edição 1991

1 comentário:

  1. "Assumamos o corpo e o
    prazer, bebamos no elmo
    de bronze o vinho e os
    cheiros do fogo."


    É uma belissima obra!

    Beijos meus,
    AL

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