sexta-feira, 17 de junho de 2011

Dante Alighieri - Opera Omnia A Divina Comédia

Traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro



INFERNO



CANTO I

[ Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue. ]

DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

Move-se o Vate então, após o sigo.
CANTO II

[ Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho. ]

FORA-se o dia; e o ar, se enevoando,
Aos animais, que vivem sobre a terra,
As fadigas tolhia; eu só, velando,

Me aparelhava a sustentar a guerra
Da jornada, assim como da piedade,
Que vai pintar memória, que não erra.

Ó Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste
Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.

“Poeta”, — assim falei, — “que começaste
A guiar-me, vê bem se em mim persiste
Calor que, à empresa que me fias, baste.

“Que o pai do Sílvio fora, referiste,
Corrutível ainda, até o inferno
Sem perder o que em corpo humano existe.

“Se do mal assim quis o imigo eterno,
Origem vendo nele do alto efeito,
O que e o qual, segundo o que discerno,

“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
Fora no céu por genitor eleito;

“À qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se a verdade, o lugar santo
Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.

“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas ouviu, de que surgiu motivo
Ao seu triunfo e ao pontifício manto.

“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada
Da salvação princípio é decisivo.

“Por que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias, Paulo sou? Essa ventura
Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.

“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.

Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a idéias novas tem disposta,
Mostrando aos seus desígnios estranheza,

Assim fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque, pensando, abandonava o intento,
Formado à pressa, que ora me desgosta.

“Do teu dizer se atinjo o entendimento”
— Do magnânimo a sombra me tornava, —
“Eivado estás de ignóbil sentimento,

“Que do homem muita vez faz alma ignava,
Das honrosas ações o desviando,
Qual sombra, que o corcel ao medo trava.

“Desse temor livrar-te desejando,
Por que vim te direi e quanto ouvido
Hei logo ao ver-te mísero lutando.

“No Limbo era suspenso: eis requerido
Por Dama fui tão bela, tão donosa,
Que as ordens suas presto lhe hei pedido.

“Brilhavam mais que a estrela radiosa
Os seus olhos; suave assim dizia
De anjo com voz, falando-me piedosa:

— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No mundo gozas fama tão sonora,
Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,

“Amigo meu, que a sorte desadora,
Pela deserta falda indo, impedido
De medo, atrás os passos volta agora.

“Temo que esteja tanto já perdido,
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
Pelo que lá no céu dele hei sabido.

“Parte, pois, e com teu discurso belo
E quanto o salvar possa do perigo
Lhe acode; e me console o teu desvelo.

“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,
De lugar venho a que voltar desejo:
Amor conduz-me e faz-me instar contigo.

“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei louvor, que hás merecido”. —
“Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:

— “Senhora da virtude, a quem tem sido
Dado só que proceda a espécie humana
Quanto é no mundo sublunar contido,

“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,
Que, já cumprida, houvera inda demora:
Em me abrir teu querer não mais te afana.

“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,
Baixar a este centro hás resolvido
Do céu, a que ardes por voltar agora”.

— “Se queres tanto ser esclarecido
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve
Por que sem medo às trevas hei descido.

“Somente as cousas recear se deve
Que a outrem podem ser causa de dano
Não das mais: a temor a causa é leve.

“De Deus favor criou-me soberano
Tal, que a vossa miséria não me empece
Nem deste incêndio assalta o fogo insano.

“Nobre Dama há no céu, que compadece
O mal, a que te envio; e tanto implora,
Que lá decreto austero se enternece.

— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:
“O teu servo fiel tanto periga,
Que ao teu amparo o recomendo agora”. —

“Luzia, sempre do que é mau imiga
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada
Ao lado estava de Raquel antiga.

“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por que não socorrer quem te amou tanto,
Que só por ti deixou do vulgo a estrada?

“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não vês que junto ao rio é combatido,
Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —

“Os danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém, nem procurado o que deseja,
Como eu, em tendo vozes tais ouvido;

“O trono meu deixei, por que te veja,
Fiada em teus discursos eloqüentes,
Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —

“Assim falava e os olhos fulgentes
Com lágrimas a mim ela volvia,
Para apressar-me a vir assaz potentes.

“A ti vim, pois, como ela requeria;
Da fera te livrei, que da colina
Tão perto já, teus passos impedia.

“Que fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta fraqueza o peito espavorido?
Por que ao valor tua alma não se inclina,

“Quando és pelas três santas protegido,
Que na corte do céu por ti se esmeram,
E gozar tanto bem lhe é prometido?” —

Quais flores, que, fechadas, se abateram
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,
Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,

Tal meu valor renova e fortalece.
Tanto ardimento o coração me aviva,
Que exclamei, como quem jamais temesse:

“Ó Dama em socorrer-me compassiva!
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
Cortês ao rogo e com vontade ativa,

“Por teu dizer no peito me acendeste
Desejo tal de vir, que sou tornado
Ao propósito, a que antes me trouxeste.

“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado

Pelo caminho entrei alto e silvestre.
CANTO III

[ Chegam os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos. ]

“POR mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.

“Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
Sabedoria suma e amor supremo.

No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

Estas palavras, em letreiro escuro,
Eu vi, por cima de uma porta escrito.
“Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro”

Tornou Virgílio, no lugar perito:
— “Aqui deixar convém toda suspeita;
Todo ignóbil sentir seja proscrito.

“Eis a estância, que eu disse, às dores feita,
Onde hás de ver atormentada gente,
Que da razão à perda está sujeita”.

Pela mão me travando diligente,
Com ledo gesto e coração me erguia,
E aos mistérios guiou-me incontinênti.

Por esse ar sem estrelas irrompia
Soar de pranto, de ais, de altos gemidos:
Também meu pranto, de os ouvir, corria.

Línguas várias, discursos insofridos,
Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,
Rumor de mãos, de punhos estorcidos,

Nesses ares, pra sempre enevoados,
Retumbavam girando e semilhando
Areais por tufão atormentados.

A mente aquele horror me perturbando,
Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?
“Quem são esses, que a dor está prostrando?” —

“Deste mísero modo” — tornou — “chora
Quem viveu sem jamais ter merecido
Nem louvor, nem censura infamadora.

“De anjos mesquinhos coro é-lhes unido,
Que rebeldes a Deus não se mostraram,
Nem fiéis, por si sós havendo sido”.

“Desdouro aos céus, os céus os desterraram;
Nem o profundo inferno os recebera,
De os ter consigo os maus se gloriaram”.

— “Que dor tão viva deles se apodera,
Que aos carpidos motivo dá tão forte?” —
“Serei breve em dizer-to” — me assevera. —

“Não lhes é dado nunca esperar morte;
É tão vil seu viver nessa desgraça,
Que invejam de outros toda e qualquer sorte.

“No mundo o nome seu não deixou traça;
A Clemência, a Justiça os desdenharam.
Mais deles não falemos: olha e passa”.

Bandeira então meus olhos divisaram,
Que, a tremular, tão rápida corria,
Que avessa a toda pausa a imaginaram.

E após, tão basta multidão seguia,
Que, destruído houvesse tanta gente
A morte, acreditado eu não teria.

Alguns já distinguira: eis, de repente,
Olhando, a sombra conheci daquele
Que a grã renúncia fez ignobilmente.

Soube logo, o que ao certo me revele,
Que era a seita das almas aviltadas,
Que os maus odeiam e que Deus repele.

Nunca tiveram vida as desgraçadas;
Sempre, nuas estando, as torturavam
De vespas e tavões as ferroadas.

Os rostos seus as lágrimas regavam,
Misturadas de sangue: aos pés caindo,
A imundos vermes o repasto davam.

De um largo rio à margem dirigindo
A vista, de almas divisei cardume.
— “Mestre, declara, aos rogos me anuindo,

“Que turba é essa” — eu disse — “e qual costume
Tanto a passar a torna pressurosa,
Se bem discirno ao duvidoso lume?” —

Tornou-me: — “Explicação minuciosa
Darei, quando tivermos atingido
Do Aqueronte a ribeira temerosa”.

Então, baixos os olhos e corrido
Fui, de importuno a culpa receando,
Té o rio, em silêncio recolhido.

Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
Ai de vós! — alta grita levantando.

“O céu nunca vereis, desesperados:
Por mim à treva eterna, na outra riva,
Sereis ao fogo, ao gelo transportados.

“E tu que estás aqui, ó alma viva,
De entre estes que são mortos, já te ausenta!”
Como não lhe obedeço à voz esquiva,

“Por outra via irás” — ele acrescenta —
“Ao porto, onde acharás fácil transporte;
Lá pássaras sem barca menos lenta”. —

“Não te agastes, Caronte! Desta sorte
Se quer lá onde” — disse-lhe o meu Guia —
“Quem pode ordena. E nada mais te importe”.

Sereno, ouvido, o gesto se fazia
Da lívida lagoa ao nauta idoso,
Quem em círculos de fogo olhos volvia.

As desnudadas almas doloroso
O gesto descorou; dentes rangeram
Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.

Blasfemaram de Deus e maldisseram
A espécie humana, a pátria, o tempo, a origem
Da origem sua, os pais de quem nasceram.

Todas no pranto acerbo, em que se afligem,
Se acolhem juntas ao lugar tremendo,
Dos maus destinos, que se não corrigem.

Caronte, os ígneos olhos revolvendo,
Lhes acenava e a todos recebia:
Remo em punho, as tardias vai batendo.

Como no outono a rama principia
As flores a perder té ser despida,
Dando à terra o que à terra pertencia,

Assim de Adam a prole pervertida,
Da praia um após outro se enviavam,
Qual ave dos reclamos atraída.

Sobre as túrbidas águas navegavam;
E pojado não tinham no outro lado,
Mais turbas já no oposto se apinhavam.

“Aqui meu filho” — disse o Mestre amado —
“concorrem quantos há colhido a morte,
De toda a terra, tendo a Deus irado.

“O rio prontos buscam desta sorte,
De Deus tanto a justiça os punge e excita,
Tornando-se o temor anelo forte!

“Alma inocente aqui jamais transita,
E, se Caronte contra ti se assanha,
Patente a causa está, que tanto o irrita”.

Assim falava; a lúrida campanha
Tremeu e foi tão forte o movimento,
Que do medo o suor ainda me banha.

Da terra lacrimosa rompeu vento,
Que um clarão respirou avermelhado;
Tolhido então de todo o sentimento,

Caí, qual homem que é do sono entrado.


CANTO IV

[ Dante é despertado por um trovão e acha-se na orla do primeiro círculo. Entra depois no Limbo, onde estão os que não foram batizados, crianças e adultos. Mais adiante, num recinto luminoso, vê os sábios da antigüidade, que, embora não cristãos, viveram virtuosamente. Os dois poetas descem depois ao segundo círculo. ]

DESSE profundo sono fui tirado
Por hórrido estampido, estremecendo
Como quem é por força despertado.

Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto por saber onde me achava,
E a tudo no lugar sinistro atendo.

A verdade é que então na borda estava
Do vale desse abismo doloroso,
Donde brado de infindos ais troava.

Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
Não distinguia no antro temeroso.

“Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —
O Poeta então disse-me enfiando —
“Eu descerei primeiro, tu segundo”. —

Tornei-lhe, a palidez sua notando:
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,
Quando conforto estou de ti sperando?” —

“Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
Piedade, medo não, como hás cuidado.

“Vamos: longa a jornada exige pressa”.
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
Em que o abismo a estreitar-se já começa,

Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.

Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
Nas multidões, que ali se apinhoavam.

“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
Antes de avante andar convém saberes

“Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
Portal da fé, em que és ditoso crendo.

“Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
Também sou dos que penam neste abismo.

“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,
Desejos, que para sempre se frustaram”.

Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
A quem do Limbo a suspenção alcança.

“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
À fé, que os erros todos desafia,

“Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?”
Da mente minha ao alvo o Mestre veio,

E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer súbito vi forte guerreiro;
De triunfal coroa era cingido.

“Almas levou — do nosso pai primeiro,
Abel, Noé, Moisés, que legislara,
Abraam, na fé, na obediência inteiro,

“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,
Israel com seu pai e a prole basta,
E Raquel, por quem tanto se afanara.

“Para a glória outros muitos mais afasta
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora
Salvo quem pertencera à humana casta”.

Andávamos, enquanto isto memora,
Sem parar, pela selva penetrando,
Selva de almas, que aumenta de hora em hora,

E da entrada não longe ainda estando,
Eis um clarão brilhante divisamos
Das trevas o hemisfério alumiando.

Dali distantes ainda nos achamos
Não tanto, que eu não discernisse em parte
Que à sede de almas nobres caminhamos.

“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
Privilégio tamanho assim disparte?”

Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do céu, que atende à fama alta e preclara,
Com que foram na terra engrandecidos”.

Eis voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai todos o altíssimo poeta!
A sombra sua torna, que ausentara”.

Quatro sombras notei, quando aquieta
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes
Nem prazer, nem tristeza se interpreta.

E disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,
Empunha espada e os três deixa distantes.

É Homero, o poeta soberano;
O satírico Horácio é o outro, e ao lado
Ovídio, em lugar último Lucano.

Como lhes cabe o nome assinalado
Que soou nessa voz há pouco ouvida,
Me honrando, honrosa ação têm praticado”.

A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
Águia em seu vôo além dos mais erguida.

Discursado entre si tendo algum tanto,
A mim volveram gracioso o gesto:
Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.

Mais foi-me alto conceito manifesto,
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,
Entre eles me cabendo o lugar sexto.

Té o clarão comigo se moveram,
Prática havendo, que omitir é belo,
Sublime no lugar, onde a teceram.

Chegamos junto a um fúlgido castelo
Sete vezes de muro alto cercado:
Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.

Passei-o a pé enxuto; acompanhado
Entrei por sete portas, caminhando
De fresca relva até ameno prado.

Graves, pausados olhos meneando
Stavam sombras de aspecto majestoso,
Com voz suave rara vez falando.

A um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos: de lá se divisava
Dessas almas o bando numeroso.

No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
O prazer com que vê-los exultava.

Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
Grifanhos olhos César nos volvia.

Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
Junto a Lavinia estava enternecido.

Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
De todos demorava Saladino.

Alçando os olhos, de respeito entrado,
O Mestre vejo dos que mais se acimam
Em saber, de filósofos cercado.

Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
Que na grandeza mais se lhe aproximam.

Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
Empédocle e Diógenes falavam,

Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloqüente,
Sêneca, o douto, que a moral explora,

Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
Averróis, nos comentos sapiente.

Resenha não me é dado fazer plena
De todos; longo o assunto está-me urgindo,
E a ser omisso muita vez condena.

A companhia então se dividindo,
Comigo o Mestre outra vereda trilha,
Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:

Chegados somos onde luz não brilha.

CANTO V

[ No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz. ]

DESCI desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
Onde o pungir da dor é mais profundo.

Lá stava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas desde a entrada,
Dava a sentença como ilhais cingia.

Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
Com perícia em pecados consumada.

Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
Pelas voltas da cauda graduando.

Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
Diz, ouve, cai, se some sem detença.

Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
— “Ó tu, que vens das dores à morada;

“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
— “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”

“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”

Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
Onde intenso carpir me aviva a pena.

Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.

Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
Molesta, em seus embates recrescido.

Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
Blasfema a Deus a multidão maldita.

Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
Razão aos apetites submetendo.

Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
Em rodopio as almas volteavam,

Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
Conforto lhes não dá nessa agonia.

Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
Assim no gemer seu, que não descansa,

Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
Que o vendaval fustiga denegrido?”

— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
Regeu nações, diversas nas loquelas.

“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
Para desculpa às torpes fantasias.

“Semíramis chamou-se: o trono estável
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
Do Soldão teve a terra memorável.

“A morte deu-se a outra, de amorosa,
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
Cleópatra após vem luxuriosa”.

Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
Que teve por amor a extrema lida.

Páris, Tristão e um bando assinalado
De sombras me indicou, nomes dizendo,
Que à sepultura amor tinha arrojado.

A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.

Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
Ao vento ser parecem tão ligeiros!”

“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —

Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —

Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em vôo despedido,
Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:

Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
Tanto as moveu da voz o tom sentido!

— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,

“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
Pois te enternece o nosso mal perverso.

“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
Diremos quanto ouvir desejarias.

“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
A terra, em que hei nascido, está jacente.

“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
Que roubaram-me: o modo inda me ofende.

“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
Que, bem o vês, eterno me perdura.

“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
Após tais vozes foi silêncio feito.

Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”

Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
Precederam do par o fim maligno!” —

Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
Movem-me o triste, compassivo pranto.

“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
Os desejos, que ainda se escondiam?” —

— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.

“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
Direi chorando o lance lastimoso.

“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
Éramos sós, de coração quieto.

“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
Um ponto só deu causa aos nossos fados.

“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heróico amante,
Este, que mais de mim se não separa,

“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
Em ler não fomos nesse dia avante”.

Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,

E tombei, como tomba corpo morto.




CANTO VI

[ No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum. ]

DO soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
Havia tanto o padecer pungente,

Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
No chão caindo infeto odor faziam.

Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,
Contra as turbas submersas, criminosas.

Sangüíneos olhos tem, o ventre ingente,
Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;
Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam de lado sem cessar, buscando
Defensa e alívio, as almas condenadas.

Cérbero, o grão réptil, nos divisando
Os dentes mostra, as bocas escancara,
De sanha os membros todos convulsando.

Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as de terra, e às guelas devorantes
Lança da fera essa iguaria amara.

Qual mastim, que em latidos retumbantes
Brada de fome, e, apenas a sacia
Devorando, aquieta as iras de antes:

Tal, aplacando a fúria, parecia
O demônio que as almas atordoa:
Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

O solo, onde pisamos, se povoa
Das sombras, que essas chuvas derrubavam:
Forma e aparência tinham de pessoa.

Sobre a terra estendidas, a alastravam;
Mas uma surge, súbito sentada,
Aos passos que adiante nos levavam.

“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada
Do inferno, vê se acaso me conheces:
Nasceste antes de eu ser nesta morada”.

Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,
Tua feição lembrar-me não consente:
Inota face aos olhos me ofereces.

“Quem és que em tal lugar tão duramente
Pelos pecados teus stás dando a pena?
Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —

— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já é de inveja, que transborda o saco,
Existência gozei leda e serena.

“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:
Por ter da gula a intemperança amado,
À chuva peno enregelado e fraco.

“Mas sou nesta miséria acompanhado;
Pois quantos aqui estão de igual castigo
Punidos foram por igual pecado”. —

— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que esse tormento o peito me enternece.
Saberás se os partidos a perigo

“Florença levarão, que já padece?
Algum justo ali vive? A que motivo
A cizânia se deve, que ali cresce?” —

— “Virão a sangue após ódio excessivo;
E o partido selvagem triunfante
O outro lançará feroz e esquivo.

“Três sóis passados, chegará o instante
De ser pelos vencidos suplantado,
Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.

“Por algum tempo o vencedor ousado
A cerviz calcará do outro partido
Que se aflige oprimido e envergonhado.

“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
Incêndio têm nos peitos acendido”. —

Assim a flébil narração boqueja.
Eu lhe respondo: “A informação completa;
Favor farás a quem te ouvir almeja.

“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,
Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,
E os mais que da virtude o amor inquieta,

“Onde estão? Diz e franco sê comigo!
Saber qual seja anelo a sorte sua:
Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —

“Entre os que sofrem punição mais crua
Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:
Se lá desces, verão a face tua.

“Quando tomares ao saudoso mundo,
De mim aviva aos meus o pensamento...
Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —

Os olhos que não tinham movimento,
Torcendo fita em mim; já curva a frente
E cai entre os mais cegos num momento.

E disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão de aguardar a angélica chamada,
Quando os julgar severo o Onipotente.

“Cad’um, a triste sepultura achada,
Ressurgindo na carne e na figura,
Voz ouvirá pra sempre reboada”. —

A passo lento assim pela mistura
Das sombras e da chuva caminhando,
Falávamos da vida, que é futura.

— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois da grã sentença esse tormento?
Igual pungir terá? Será mais brando?” —

— “Do teu saber recorre ao documento:
Verás que ao ente quando mais se eleva
Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

“Bem que esta raça condenada à treva
Jamais da perfeição se eleve à altura
Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —

Perlustramos do círculo a cintura,
De cousas praticando que não digo,
Té descer um degrau na estância escura.

Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.

CANTO VII

[ Pluto, que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os irascíveis e os acidiosos. ]

PAPE Satan, pape Satan, aleppe:
Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.
Para que eu do conforto não discrepe,

Virgílio, em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente” — me diz — “se desvaneça o susto!
Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.

E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
Em ti consome esse furor injusto!

“Se ao abismo descemos tenebroso,
A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —

Como o mastro, abatendo, traz consigo
Velas, que o vento de feição tendia,
Baqueou-se por terra o monstro imigo.

E, pois que o quarto círculo se abria,
Mais penetramos pela estância horrenda,
A que todo seu mal o mundo envia.

Ah! justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?
Por que da culpa nos obceca a venda?

Como em Caribde a vaga que ressoa
Embate noutra, e quebram-se espumantes:
Assim turba com turba se abalroa.

Almas em cópia, nunca vista de antes,
Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,
Rolavam com seus peitos ofegantes.

Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
“Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”

Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
Por injúria o estribilho apregoando.

Nos semicírc’lo novamente rosto
Faziam, té o embate reiterarem.
Eu, me sentindo à compaixão disposto,

— “Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao Mestre disse — “À esquerda os colocados
Clérigos são para tonsura usarem?”

— “Da mente sendo vesgos, transviados”
— Tornou — “andaram na primeira vida,
Sempre os bens aplicando desregrados.

“Quem seus clamores ouve não duvida:
Levantam grita aos termos dois chegados,
Onde oposta os separa a culpa havida:

“Os que então de cabelos despojados
Clérigos, papas, cardeais hão sido,
Pela nímia avareza subjugados”. —

— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos serão, por certo, que eu conheça,
Imundos desse mal aborrecido”. —

— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
Vestígio não deixou, que ora apareça:

“Eles se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas,
Os outros de cabelos pouquidade.

“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do céu as portas; penam nesta lida,
Com mágoas, que não podem ser contadas.

“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
Da Fortuna anelando os bens na vida.

“Todo o ouro, que as entranhas conteriam
Da terra, não pudera dar repouso
A um dos que em fadiga se cruciam”. —

— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —

Responde o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta ignorância a mente vos ofende.
Do meu pensar direi toda a verdade.

“Quem pelo seu saber tudo transcende,
Os céus criando, guias elegeu-lhes;
E toda parte a toda parte esplende,

“Pela luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim fez aos mundanos esplendores,
Geral ministra e diretora deu-lhes,

“Que em tempo os bens mudasse enganadores
De nação a nação, de raça a raça
Contra esforços de humanos sabedores.

“A pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo o seu querer, que, se escondendo
Qual serpe em erva triunfante passa.

“Contra ela o saber vosso não valendo,
No seu reino ela tem poder e mando,
Como os outros o seu, estão regendo.

“Mudanças incessante efetuando,
Se apressa por fatal necessidade,
E assim tantas no mundo vai formando.

“Tal é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta o que louvá-la deveria,
Censurando-a com dura iniqüidade.

“Mas, feliz, não escuta a vozeria,
E entre iguais criaturas primitivas,
Volvendo a esfera, em paz goza alegria.

“Desçamos ora a dores mais esquivas;
Estrelas baixam, que ao partir surgiram;
Demoras são defesas, são nocivas”. —

Os nossos passos através seguiram
Do círculo até fonte, que, fervendo,
As águas brota, que torrente abriram,

A cor mais negra do que persa tendo.
Ao longo do seu curso nós baixamos,
Por caminho diverso nos movendo.

Lagoa, dita Stígia, deparamos,
Junto à encosta maligna produzida
Pelo triste ribeiro, que notamos.

Eu, que tinha a atenção toda embebida,
Vi sombras, nesse pântano, lodosas,
Desnudas, de face enfurecida.

Não só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,
Com dentes laceravam-se espantosas.

— “As almas, filho meu, que ora estás vendo
São dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
Como certo também fica sabendo

“Que sob as águas multidão suspira,
E em borbulhões as águas entumece
Por toda essa extensão, que vista gira”. —

— “Nos doces ares, a que o sol aquece”
— No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
Dentro em nós fumo túrbido recresce.

“Ora no lodo inda mais triste somos”. —
Com voz cortada assim gargarejavam,
De palavras somente havendo assomos.

“Os passos, em grande arco, nos levavam.
Do paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo à vista, que assim lodo tragavam,

E junto de uma torre alfim chegando.



CANTO VIII

[ Flégias corre com a sua barca para os dois Poetas serem conduzidos, passando à lagoa, à cidade de Dite. No trajeto encontram a Filipe Argenti, florentino, que discute com Dante. Chegando às portas de Dite, os demônios não o querem deixar entrar. Virgílio, porém, diz a Dante que não lhe falte a coragem, pois vencerão a prova e que não há de estar longe quem os socorra. ]

ACRESCENTAR eu devo, prosseguindo,
Que da torre inda estávamos distantes,
Quando os olhos ao cimo dirigindo,

Dois fanais brilhar vemos vacilantes,
A que outro de tão longe respondia,
Que mal se avistam seus clarões tremantes.

E eu de todo o saber ao mar dizia:
— “Os lumes dois por que? Por que o terceiro?
Para acendê-los quem razão teria?” —

— “Pela onda impura” — me tornou — “ligeiro
Quem se aguarda já vês, se não te empece
A vista do paul o nevoeiro”. —

Qual seta, que pelo ar veloz corresse
Da corda arremessada, discernimos
Tênue batel, que vir pra nós parece.

A regê-lo um arrais distinguimos:
— “Alfim chegaste, espírito execrando!”
Em retumbante grita nós lhe ouvimos,

— “Flégias, Flégias, estás em vão bradando!” —
Disse-lhe o Mestre — “nos terás somente
Enquanto formos o paul passando.” —

Como quem reconhece, e pesar sente,
Um grande engano, que se lhe há tecido,
Flégias assim na sua ira ardente.

Tendo Virgílio à barca descendido,
Eu segui-o: somente aos meus pesados
Passos mostrou ter carga recebido.

Em sendo o Mestre e eu no lenho entrados,
O lago foi cortando a antiga proa
Com sulcos mais que de antes profundados,

Enquanto assim corremos, eis me soa
De lutulenta sombra voz que exclama:
— “Quem és que em vida vens para a lagoa?”

— “Sim, venho, mas não fico nesta lama.
E tu quem és que imundo te hás tornado?” —
— “Bem vês: um sou que lágrimas derrama.”

E eu então: — “Fica em lodo mergulhado.
Em dor, em pranto, espírito maldito!
Sei quem és, se bem stás desfigurado”. —

Tendeu à barca as mãos aquele aflito,
Mas por Virgílio, que o repele presto
— “Com teus iguais vai, cão, te unir!” — foi dito.

Abraçando-me então com ledo gesto
Me oscula e diz: — “Abençoado seja,
Quem tão altivo te gerou e honesto!

“Essa alma, que de orgulho inda esbraveja,
Avessa ao bem, de raiva possuída,
Deixou em si memória, que negreja.

Quantos reis, grandes na terrena vida,
Virão, quais cerdos, se atascar no lodo,
Fama de si deixando poluída!” —

— “Mestre, grato me fora sobremodo
Vê-lo no ceno mergulhar profundo,
Antes de eu ter daqui saído em todo”. —

— “Antes que a margem — respondeu jocundo —
Avistes, gozarás dessa alegria,
Verás penar o espírito iracundo”. —

E logo ao pecador, como à porfia,
Tanta aflição causou a imunda gente,
Que ainda louvo a Deus, que o permitia.

Gritavam todos: — “A Filipe Argenti!” —
E a florentina sombra, se volvendo
Contra si, se mordia insanamente:

Lá o deixei, não mais nele entendendo.
Súbito, ouvindo um lamentar amaro,
Os olhos fitos para além e atendo.

E o bom Mestre me disse: — “Ó filho caro,
Stá perto Dite, de Satã cidade,
Que há povo infindo para o bem avaro”. —

— “Lá do vale no fundo em quantidade
Mesquitas” — respondi — “rubras discerno
De flama, creio, pela intensidade”. —

E o Mestre a mim: — “As faz o fogo eterno
Vermelhas, que lá dentro está lavrando
Como tens visto neste baixo inferno”. —

Já nos profundos fossos penetrando
De que o triste alcáçar é circundado,
Me estavam ferro os muros semelhando.

Mas, após grande giro, hemos tocado
Na parte, onde o barqueiro com voz forte
— “Saí” — gritou — “à entrada haveis chegado!”

À porta vi daqueles grã coorte
Que o céu choveu; bramiam de despeito:
“Este quem é que, antecipando a morte,

“Tem dos mortos no reino sido aceito?” —
Meu sábio Mestre então lhes fez aceno
Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.

Contendo um pouco às sanhas o veneno
Disseram: — “Vem tu só; vá-se o imprudente,
Que neste reino entrou, de audácia pleno;

“Só deixe a empresa em que embarcou demente;
Tente-o, se sabe; ficarás no entanto;
Pois és seu guia à região nocente”. —

Imagina, ó leitor, qual fosse o espanto
Meu escutando a horrífica ameaça:
Não deixar a mansão temi do pranto.

“Ó Mestre meu, que tanta vez a graça
Fizeste de alentar-me o peito aflito
No perigo iminente e atroz desgraça,

“Não me deixes” — disse eu — “neste conflito!
E, se avante passar é defendido,
Ambos voltemos do lugar maldito!” —

Quem tão longe me havia conduzido
— “Não temas” — diz — “não pode ser vedado
O passo, que por Deus foi permitido.

“Aqui me espera e o ânimo prostrado
Fortalece e alimenta de esperança:
Não hás de ser no inferno abandonado”. —

O doce pai se afasta e à porta avança.
Ficando assim na dúvida e incerteza,
No pró, no contra a mente se abalança.

Não pude o que propôs ouvir; na empresa
Curta há sido a detença: de repente
Esquivam-se os precitos com presteza.

De roldão cerra a porta a imiga gente
Do Mestre à face, que, ficando fora,
A mim se restitui mui lentamente.

De olhos baixos, faltava-lhe a de outrora
Afouteza, e dizia suspirando:
“Quem me tolhe da dor a estância agora?” —

E logo a minha alteração notando
“Não te aflijas; que os óbices te digo
Hei de vencer que a entrada estão vedando.

“Não é nova esta audácia do inimigo;
Em mais patente porta há já mostrado,
Que sem ferrolho está: viste-a comigo,

“E a lúgubre inscrição lhe hás contemplado.
Deixou atrás e desce a penedia,
Pelos círc’los passando não guiado,

Abrir quem pode esta cidade ímpia”. —




CANTO IX

[ Dante pergunta a Virgílio se havia já percorrido outra vez o Inferno. Virgílio responde que já percorreu todo o Inferno e narra como e quando. Na torre de Dite se apresentam, no entanto, as três Fúrias e depois Medusa, que ameaçam a Dante. Virgílio, porém, o defende. Chega um anjo do Céu que abre aos Poetas as portas da cidade rebelde. ]

DO medo a cor, que o gesto me alterara,
Ao ver tornar Virgílio em retirada,
Serenou turvação, que o seu mudara.

Como escutando, espreita; que a cerrada
Névoa os ares em torno enegrecia,
E a vista, incerta, achava-se atalhada.

— “Mas é mister vencer nesta porfia...” —
Lhe ouvi — “se não ... socorro é prometido...
Oh! quanto a vinda sua é já tardia!” —

Bem vi que das palavras o sentido,
Que a declarar apenas começava,
Fora por outros logo confundido.

Porém maior receio me assaltava,
Na reticência auspício triste vendo,
Que na expressão talvez não se encerrava.

— “A esta hórrida estância, descendendo
Do limbo, pode vir quem só padece,
A esperança”, — inquiri — “toda perdendo?”

O Mestre respondeu: — “Raro aparece
Ensejo, que um de nós a andar obriga
Pelo caminho, que aos abismos desce.

“Ali, porém, já fui, quando inimiga
Esconjurou-me Ericto, que os esp’ritos
Constrangia a fazer c’os corpos liga.

“Des’pouco eu me finara: por seus ritos
Ao círculo de Judas fui trazido
Para a sombra tirar de um dos precitos.

“É o lugar mais fundo e denegrido,
Mais remoto do céu, que os orbes gira.
Sei o caminho: esforça-te, ó querido!

“Este paul, que o bruto cheiro expira,
A cidade circunda do tormento,
Onde entrar não podemos já sem ira”.

Deslembro o que mais disse: o pensamento
Da torre altiva ao cimo chamejante,
Que os olhos me prendia, estava atento.

Lá o aspecto se erguia horripilante
De fúrias três; de sangue eram tingidas,
Feminis no meneio e no semblante.

De hidras verdes mostravam-se cingidas,
Cerastes, serpes cada uma tinha
Por coma, em torno à fronte entretecidas.

Virgílio, que conhece da rainha
Do eterno pranto essas ancilas cruas,
— “Nas Érinis atenta” diz-me asinha.

“Megera à esquerda está das outras duas,
Chora à direita Aleto e fica ao meio
Tisífone”. — E pôs termo às vozes suas.

Co’as unhas cada qual rasgava o seio,
Com seus punhos batiam-se, em tal brado,
Que ao Vate me acerquei, de pavor cheio.

Olhando-me dizia: — “Transformado
Em pedra seja por Medusa; o assalto
Do ímpio Teseu não foi assaz vingado.

— “Volta a face; de luz o rosto falto
Conserva; que, se a Górgona encarar-te,
Tu não mais tornarás da terra ao alto”. —

Disse o Mestre, e volveu-me à oposta parte;
E as mãos juntando às minhas que não bastam,
Os olhos amparar-me quis dessa arte.

Ó vós cujas idéias não se afastam
Das leis da sã razão, vede os preceitos
Que destes versos sobre o véu se engastam.

Eis sobre as águas túrbidas desfeitos
Troam sons de fracasso temeroso;
Tremendo, as margens sentem-lhe os efeitos.

O tufão assim freme impetuoso,
Que, de ardores contrários se excitando,
Sem pausa fere a selva, e furioso,

Quebrando ramas, flores arrancando,
Entre nuvens de pó soberbo assalta
Feras, pastores e lanoso bando.

Os olhos descobriu-me e disse: “Exalta
A vista agora até a espuma antiga,
Onde mais acre a cerração ressalta”.

Quais rãs, divisando a cobra imiga,
Todas da água no seio desaparecem,
E cada qual no lodo entra e se abriga,

Tais milhares de espíritos parecem,
Em derrota fugindo ante a figura
Que passa; nágua os pés não se umedecem.

Movendo a esquerda mão, a névoa escura,
Que lhe era em torno ao vulto, dissipava:
Só este afã lhe altera a face pura.

Ser ele conheci que o céu mandava;
A Virgílio voltei-me, e mudo e quieto
Ao aceno, que fez, eu me acurvava.

Quantos lumes reflete o iroso aspecto!
À porta chega: ao toque de uma vara
Abre-se a entrada do alcáçar infecto.

— “Ó turba vil, que o céu de si lançara!” —
Ao limiar falou da atroz cidade,
— “Donde vos vem da audácia a insânia rara?

“Por que recalcitrais à alta vontade,
Que sempre cumpre o seu excelso intento,
E à dor já vos cresceu a intensidade?

“Cuidais pôr ao destino impedimento?
Cérbero, o vosso, na memória tende:
Trilhados inda estão-lhe o colo e o mento”.

Então pelo caminho imundo estende,
Sem nos falar, os passos semelhante
A quem outros cuidados a alma prende,

Daqueles, que há presentes, bem distante.
Nós à cidade afoutos caminhamos:
Deu-nos esforço o seu falar pujante.

Já, removido todo o pejo, entramos.
Eu, que sentia de saber desejo
Quanto o forte contém que franqueamos.

Como fui dentro, a tudo pronto, vejo
Campanha em toda parte ilimitada,
Mas não espaço às punições sobejo.

Como em Arle, onde o Rône faz parada
Ou junto a Pola, de Quernaro perto,
De que à Itália a fronteira está banhada,

Stá de sepulcros desigual e incerto
O solo: outros assim a estância feia,
Mas de modo mais agro, tem coberto.

Entre eles chama horrífica serpeia
E os abrasa inda mais que frágua ardente
Que arte para amolgar o ferro ateia.

Alçada a tampa, é cada qual patente.
Dali surgia um lamentar profundo,
De miséreo gemido permanente.

— “Ó Mestre meu, quais foram lá no mundo” —
Eu disse — “aqueles, que no duro encerro
Denunciam tormento sem segundo?” —

“Aqui stão os hereges por seu erro,
Com seus sequazes dos diversos cultos:
São mais do que tu crês em cada enterro.

“Iguais com seus iguais estão sepultos,
Uns túmulos mais que outros são candentes”.
À destra então voltou: com tristes vultos

Passamos entre o muro e os padecentes.



CANTO X

[ Caminhando os Poetas entre as arcadas, onde estão penando as almas dos heresiarcas, Dante manifesta a Virgílio o desejo de ver a gente nelas sepultada e de falar a alguém. Nisto ouve uma voz chamá-lo. É Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta conversa com ele é interrompido por Cavalcante Cavalcanti, que lhe indaga por seu filho Guido. Continua Dante o começado discurso com Farinata, que lhe prediz obscuramente o exílio. ]

ENTRA Virgílio por vereda estreita,
Que entre o muro e os martírios vai seguindo:
Após os seus meu passo se endireita.

— “Virtude suma! Ó tu, que, dirigindo
Me estás, ao teu sabor na estância triste,
Me instrui, ao meu desejo deferindo.

“A gente ver se pode que ora existe
Naquelas sepulturas descobertas,
A que nem guarda, nem defesa assiste?” —

— “Serão” — me respondeu — “todas cobertas
No dia, em que, de Josafá tornando,
Os corpos tragam, de que estão desertas.

“Epicuro aqui jaz com todo o bando
Dos discípulos seus, que professaram
Que alma fenece, a vida em se acabando.

“O que as tuas palavras declararam
Satisfeito há de ser, como o que vejo
Dos votos que em teu peito se ocultaram”. —

— “Não te expus, meu bom Mestre, quanto almejo,
Porque de breve ser tenho o cuidado,
E a mais longo dizer não deste ensejo”. —

— “Ó Toscano, que, vivo hás penetrado
Do fogo na cidade e és tão modesto,
Detém-te um pouco, se te for de agrado.

“Por teu falar me está bem manifesto
Que nessa nobre pátria tens nascido,
A que fora eu talvez assaz molesto”. —

Ouço este som, de súbito saído
De um dos jazigos: tanto eu me torvara,
Que ao Mestre me achegava espavorido.

— “Que temes tu?” — Virgílio diz — “Repara:
É Farinata em seu sepulcro alçado,
Do busto em toda a altura, se depara”. —

Na sombra os olhos tinha eu já fitado:
Altiva levantava a fronte e o peito,
Como em desprezo do infernal estado.

Por entre as tumbas me levou direito
Ao vulto o Mestre com seu braço presto,
Dizendo-me: — “Sê claro em teu conceito!” —

Junto ao sepulcro apenas fui, com gesto
Severo um pouco olhou-me e desdenhoso
— “Teus maiores?” — falou — “Faz manifesto”.

Eu, já de obedecer-lhe desejoso,
Quanto sabia expus-lhe francamente.
O sobrolho arqueava um tanto iroso,

E tornou: — “Guerra crua fez tua gente
A mim, aos meus avós, ao partido;
Mas duas vezes bani-os justamente”. —

— “Mas todos os que expulsos tinham sido
Se hão, de uma e de outra vez repatriado:
Não têm essa arte os vossos aprendido”. —

Surgindo então de Farinata ao lado
Somente o rosto um vulto nos mostrava,
Sobre os joelhos, cheio, levantado.

Com ansiosos olhos me cercava
A ver se alguém viera ali comigo.
Mas, perdida a esperança, que o animava,

Pranteando inquiriu: — “Se ao reino imigo
Por prêmio baixas do teu alto engenho,
Onde é meu filho? Pois não vem contigo?

— “Por moto próprio aqui” — volvi — “não venho;
Perto me aguarda quem meus passos guia,
Vosso Guido talvez teve-o em desdenho”.

A pena sua e as vozes, que lhe ouvia,
Denunciado haviam-me o seu nome:
Pude assim responder quanto cumpria.

Súbito ergueu-se o espírito e gritou-me:
“Teve disseste: não mais vive agora?
O corpo seu a terra já consome?”

Como eu tivesse em responder demora
À pergunta, de costas recaía,
E novamente não mostrou-se fora.

Mas esse outro magnânimo, que havia
De antes falado não mudou de aspeito;
No colo e busto imóvel persistia.

— “Se aquela arte não dera ao meu proveito” —
Prosseguiu — “me produz esta certeza
Maior tormento no adurente leito.

“Porém vezes cinqüenta a face acesa
Não mostrará do inferno a soberana
Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.

“Assim possas voltar à vida humana!
Contra os meus, diz, por que tanta maldade
Em cada lei, que desse povo emana” —

Eu respondi: — “O estrago, a mortandade,
Que do Árbia as águas de rubor tingira
A cúria nossa move à austeridade”. —

Inclinando a cabeça então, suspira
E diz: — “não fui lá só naquele dia,
Nem sem motivo aos outros eu seguira.

“Porém achei-me só, quando exigia
De Florença a ruína o geral brado:
A peito descoberto eu defendia-a”. —

— “Seja o descanso à vossa prole dado:
Mas, vos suplico, de penoso enleio
Fique o juízo meu descativado.

“Se bem percebo, do futuro ao seio
Subindo e ao tempo o curso antecipando,
Do presente ignorais todo o rodeio”. —

— “Os que têm vista má nos semelhando” —
Tornou-me — “as cousas mais distantes vemos,
De Deus última luz em nós raiando.

“Quando estão perto ou no presente as temos
Se apaga a lucidez, e a mente aprende
Por outrem só o que de vós sabemos.

“Ciência nossa do porvir depende;
Em sendo a porta do porvir cerrada,
Essa luz morre em nós, não mais se acende”.

Então minha alma, de remorso entrada,
“Dize” — replico — à sombra, a quem falava,
Que o filho inda entre os vivos tem morada.

Se presto lhe não disse o que exorava,
Da dúvida, que, há pouco, heis-me explicado
Pela influência dominado eu stava”. —

Se bem fosse do Mestre apelidado,
Rogando a sombra a me dizer prossigo
As almas, de quem stava acompanhando.

Respondeu: — “Muitos mil jazem comigo
Aqui dentro, o Segundo Frederico,
Com ele o cardeal, de outros não digo”. —

Dos olhos se apartou. A cismar fico,
Voltando ao sábio Mestre, na ameaça
Desse, que ouvira, vaticínio único.

Ele caminha, e, enquanto avante passa,
Me diz: “Por que és torvado?” — Eu tudo conto
Expondo o que me inquieta e me embaraça.

— “Do que ouviste a memória cada ponto
Conserva!” — o sábio ordena; e, logo, alçando
O dedo, segue: — “Agora escuta pronto.

“Ante o doce raiar daquela estando,
Que tudo aos belos olhos tem presente,
Se irão da vida os transes revelando”. —

Moveu-se logo à esquerda diligente;
Deixando o muro, ao centro caminhava
Por senda, que descia ao vale horrente,

Que hediondos vapores exalava.

CANTO XI

[ Os Poetas chegam à beira do sétimo círculo. Sufocados pelo mau cheiro que se levanta daquele báratro, param atrás do sepulcro do papa Anastácio. Virgílio explica a Dante a configuração dos círculos infernais. O primeiro, que é o sétimo, é o círculo dos violentos. Como a violência pode dar-se contra o próximo, contra si próprio e contra Deus, o círculo é dividido em três compartimentos, cada um dos quais contém uma espécie de violentos. O segundo círculo, que é o oitavo, é o dos fraudulentos e se compõe de dez círculos concêntricos. O terceiro, que é o nono, se divide em quatro compartimentos concêntricos. Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários. Movem-se depois para o lugar de onde se desce para o precipício. ]

À BORDA de alta riba assim chegamos,
Que em círc’lo rotas penhas conformavam:
De lá mais crus tormentos divisamos.

Do fundo abismo exalações brotavam,
Tão acres, que a fugir nos obrigaram
Para trás das muralhas elevadas

De um sepulcro, em que os olhos decifraram:
“Sou do papa Anastácio a sepultura,
Que de Fotino os erros transviaram”.

“Lentamente desçamos desta altura:
Assim, o olfato ao mau odor afeito,
Não hemos de sentir-lhe a ação impura”.

A Virgílio tornei: “Proceda a jeito,
Ó Mestre, por que o tempo consumido
Na demora, não corra sem proveito”. —

— “Já stava o meio, ó filho, apercebido.
Nestas penhas três círc’los há menores,
Por degraus, como os outros, que hás descido.

“Plenos stão de malditos pecadores.
Por que, em vendo, os conheças logo, atende:
Direi seus crimes e da pena as dores.

“Todo mal, que no céu cólera acende,
Injustiça há por fim, que o dano alheio,
Usando fraude ou violência, tende.

“Próprio do homem por ser da fraude o meio
Mais descontenta a Deus; mores tormentos
Em lugar sofre de aflições mais cheio.

“Dos círc’los o primeiro é dos violentos;
Mas, força a três pessoas se fazendo,
Foi construído em três repartimentos.

“A Deus, a si, ao próximo ofendendo,
Nas pessoas, nos bens a força fere,
Como hás de convencer-te, me entendendo.

“Morte ou dor força ao próximo confere.
Com ruína, com fogo os bens lhe invade.
Quando pela extorsão não se apodere.

“Homicidas, os que usam feridade,
Ladrões, desvastadores, torturados
Stão no primeiro, em turmas, sem piedade.

“Homens há contra si cruéis, irados
Ou contra os próprios bens: pois no segundo
Recinto jazem sempre amargurados,

“Quem se privara do terreno mundo,
Os que seus cabedais malbarataram,
Quem chora onde pudera estar jucundo.

“Contra Deus violências homens preparam,
Se o negam, se o blasfemam, desdenhando
Natura e os dons, que nela se deparam.

“No recinto menor sinal nefando
Caors marca igualmente com Sodoma,
E os que pecaram contra Deus falando.

“A fraude em que o remorso tanto assoma,
Ou trai a confiança ou premedita
Danos a quem desprevenido toma.

“A fraude desta espécie se exercita
Contra os laços de amor, que faz natura:
Portanto no segundo círc’lo habita

“Adulação com simonia impura,
Hipócritas, falsários, feiticeiros,
Rufiães e outros dessa laia escura.

“Transtorna a outra afetos verdadeiros,
Que inspira a natureza e os que origina
A mútua fé nos ânimos inteiros.

“E, pois, no círc’lo extremo, que domina
Da terra o centro e onde Dite pesa,
Eterna pena aos tredos se destina”. —

“Tem, Mestre” — eu disse — “o cunho da clareza
O que expões, distinguindo exatamente
A geena do inferno e a gente presa.

“Diz-me: os que jazem na lagoa ingente,
Os que flagela o vento ou chuva imiga,
Os que se encontram em frêmito insolente,

“Por que Deus lá em Dite os não castiga,
Se a ira a Deus seus feitos acenderam?
Se não, por que a aflição tanto os fustiga?” —

“Deliras? Da tua mente se varreram
Princípios sãos” — tornou — “a que és afeito?
A que rumo as idéias se volveram?

“Olvidas, porventura, esse preceito,
De que houveste na Ética a ciência,
Das três disposições, que em mau conceito

“Estão do céu, — malícia, incontinência
E furor bestial? — como a segunda
Importa a Deus menor irreverência?

“Se atentas em verdade tão profunda,
Se lembras quais são esses que padecem
Acima da mansão, que o fogo inunda,

“Verás então ser justo não sofressem
Daqueles maus a par, menos pesada
Punição culpas suas merecessem”. —

“Sol, que me aclara a vista perturbada,
Às lições tuas dou tamanho apreço,
Que o duvidar, como o saber, me agrada.

“Tornando ao que disseste, expliques peço,
Por que motivo, Mestre, usura ofende
A divina bondade em tanto excesso”. —

“Filosofia” — disse — “quem a atende
Tem demonstrado, quase em toda parte,
Que a natureza a sua origem prende

“Do divino intelecto e da sua arte.
Da Física em princípio hás conhecido
Preceito, que hei mister recomendar-te:

Que é da vossa arte ir sempre que há podido
Após natura — à mestra obediente; —
Neta de Deus chamá-la é permitido.

“Da natureza e da arte, se tua mente
O Gênese em começo lembra, colhe
O seu sustento e haver a humana gente.

“Usura bem diversa estrada escolhe
Natura e a aluna sua menospreza,
Esperança e cuidado e mal recolhe.

Mas andemos; prossiga a nossa empresa.
Vão no horizonte os Peixes assomando;
Voltando sobre o coro o culto pesa

E, além, a rocha está passagem dando”. —

CANTO XII

[ O Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue. ]

DA descida era o passo tão fragoso
E tal por quem lá estava à guarda e atento,
Que se fazia à vista pavoroso.

Como a ruína, que daquém de Trento,
O Ádige feriu, por terremoto
Ou por faltar de chofre o fundamento;

Do viso ao val do monte, que foi roto,
Tão derrocada vê-se a penedia,
Que a descê-la o caminho é quase imoto.

A ribanceira assim nos parecia.
E à borda do penedo fracassado
De Creta o monstro infame se estendia,

Da falsa vaca torpemente nado.
Apenas viu-nos, se mordeu fremente,
Como quem pela raiva é devorado.

“Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser de Atenas o príncipe, o que à morte
Lá sobre a terra te arrojou valente?

“Arreda, bruto! Que este é de outra sorte;
Da tua irmã não recebera ensino;
De vós outros vem ver a pena forte”.

Qual touro desprendido, quando o tino
Mortal golpe lhe rouba, que não pode
Correr, mas salta a vacilar mofino:

Assim o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me: “Demanda presto a entrada
E desce, enquanto em vascas se sacode”. —

A quebrada descíamos formada
De pedras soltas; cada qual, movida,
Cedia, em sendo por meus pés calcada.

E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A mente na ruína, que do horrendo
Monstro a ira defende já vencida.

“Deves saber que, de outra vez descendo
Até o extremo lá do baixo inferno,
Esta rocha não vi, como a estás vendo,

“Mas, pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele que há tomado a grande presa,
A Dite, lá no círculo superno,

“Deste val tremeu tanto a profundeza,
Que sentisse pensei todo o universo
O amor, com que alguém diz ter certeza

“De que ao caos muita vez será converso.
Foi aqui, noutras partes, nesse instante,
Roto o velho penhasco em treva imerso.

“Mas olha o vale: o rio é não distante
De sangue, onde verás fervendo aquele,
Que violência exerceu no semelhante.

“Ó ira louca, ó ambição, que impele
Na curta vida nossa, ao inferno arrasta
E para sempre nos submerge nele!” —

Eis uma cava divisei mui vasta,
Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,
Como dissera quem do mal me afasta.

No espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros correm, setas agitando,
Como soíam no viver primeiro.

Descer nos vendo, pára o ardido bando.
Três de entre eles então nos demandaram,
Os arcos e arremessos preparando.

Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
De lá falai, ou tiros se disparam!” —

Virgílio respondeu: — “Resposta nossa
Terá Quiron de perto, sem demora.
Sempre te dana a pressa que te apossa”. —

Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
Mas se vingou de quem fatal lhe fora.

“Esse do meio, que o seu peito mira,
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —

Aos mil em volta ao rio sanguinoso
As almas seteavam, que excediam,
Mais do que é dado, o líquido horroroso.

Àqueles monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.

Quando desta arte a larga boca afeita,
Disse à companha: — “Haveis já reparado
Que move aquele tudo, em que os pés deita?

“Nunca assim pés de morto hão caminhado”.
O Guia meu, que junto já lhe estava
Do peito, onde era um ser noutro enleado,

— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A visitar o val maldito, escuro
Para cumprir dever, que lho ordenava.

“Deixando de cantar o hosana puro
Alguém me há cometido o cargo novo.
Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:

Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
Envia algum, que escolhas no teu povo,

“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.

Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
Que outro bando o caminho lhes não corte!” —

Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
Donde agudo estridor ao ar subia.

Té os cílios no sangue os padecentes
Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
Truculentos e em roubo preminentes.

“Chora-se aqui por feitos desumanos.
Alexandre aqui está, Dionísio antigo
Que gemer fez Sicília tantos anos.

“De negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado
Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)

“Roubara a vida o pérfido enteado”. —
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
— “O segundo lugar me é reservado”. —

Pouco além parou Nesso: olhar queria
Uma turba, que, estando submergida,
Toda a cabeça para fora erguia,

Disse, indicando uma alma retraída:
“Perante Deus um coração ferira,
Que inda Londres venera estremecida”. —

A cabeça vi de outros, que subira
Do rio à superfície e o inteiro busto,
Suas feições no mundo eu distinguira:

Ia baixando o sangue até que a custo
Os pés cobria a quem passar quisesse:
O fosso ali vencemos já sem custo.

“Se desta parte o borbulhão parece
Do rio escassear, eu te asseguro”
— Disse Nesso — “que mais engrossa e desce

“Na parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego em que, como hás visto, a tirania
As penas dá no seu tormento duro.

“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,
Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia

“Dos dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.

Voltou depois do rio o vau passando.


CANTO XIII

[ Os dois Poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos contra si mesmos e os dilapidadores dos próprios bens. Os primeiros são transformados em árvores, cujas negras folhas as Hárpias dilaceram; os outros são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da sua pátria. ]

NÃO stava ainda Nesso do outro lado,
Quando nós por um bosque penetramos,
Dos vestígios de passos não marcado.

Não fronde verde, mas escura, ramos
Não lisos, mas travados e nodosos,
Não pomos, puas com veneno achamos.

Por silvados mais densos, mais umbrosos,
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
Não foge, agros deixando deleitosos.

Das Hárpias o bando aqui pousava.
Que expeliram de Strófade os Troianos,
Vaticinando o mal, que os aguardava.

Asas têm largas, colo e rosto humanos,
Garras nos pés, plumoso e ventre enorme,
Soam na selva os uivos seus insanos.

E disse o Mestre: “Convém já te informe
Que o recinto segundo vais entrando,
Onde verás spetáculo disforme,

“Até que ao areal chegues infando.
Atenta! E darás fé à narrativa,
Que fiz, ainda lá no mundo estando”.

Em toda parte ouvi grita aflitiva:
Como não via quem assim gemesse,
Parei e a torvação se fez mais viva.

Creio que o Mestre cria então que eu cresse
Que esses lamentos enviava aos ares
Uma turba, que aos olhos se escondesse;

Pois disse-me: “De um tronco se quebrares
Um só raminho, ficarás ciente
Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —

O braço estendo então e prontamente
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
“Por que razão me arrancas?” diz fremente.

De sangue negro o ramo já tingido,
“Por que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
Assomos de piedade nunca hás tido?” —

“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais compassiva a tua mão seria
Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.

Como acha verde, quando se incendia
Num extremo s’estorce, no outro estala,
Chiando e a umidade fora envia:

Daquela arvora assim brotava a fala,
E o sangue; a minha mão já desprendera
O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.

“Se de antes ele acreditar pudera”
Lhe torna o sábio Mestre “alma agravada,
O que eu nos versos meus lhe descrevera,

“Por te ferir sua mão não fora alçada.
Não crera eu mesmo, e tanto que o induzira
Ao feito, que me pesa e desagrada.

“Diz-lhe quem foste e as dúvidas lhe tira.
O mal te compensando, a fama tua
Há de avivar no mundo, a que retira”. —

E o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais, que de bom grado eu já explico:
Ao triste dai que a mágoa exprima sua.

Fui quem do coração de Frederico
As chaves tive e usei com tanto jeito,
Fechando e desfechando que era rico

“Da fé com que a mim só rendeu seu peito
No glorioso cargo fui constante,
Força, alento exauri por seu proveito.

“A torpe meretriz, que, a todo instante
Ao régio paço olhos venais volvendo,
Morte comum, das cortes mal flagrante,

“Contra mim ódio em todos acendendo,
Por eles acendeu iras de Augusto,
Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.

“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
Comigo iníquo fui eu, que era justo.

“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,

“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —

O vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me “fala, se tu mais desejas
E pede-lhe: do tempo és apressado”. —

Tornei: “Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais convir-me; que eu sinto-me inibido
Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.

Ele então: “— Se o desejo teu cumprido
For por este homem, nobremente usando,
Te apraza, encarcerada alma, ao pedido

“Nosso atender, e como nos mostrando
Se liga ao tronco o esp’rito e se é factível
Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —

Soprou de rijo o lenho; e perceptível
Aquele som desta arte nos dizia:
— “Resposta breve dou quanto é possível.

“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
Ao círc’lo sete Minos logo a envia.

“Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
Aí, qual grão germina de centeio,

“Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.

“Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.

“Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —

Ouvíamos ainda a sombra mesta,
De mais dizer cuidando houvesse o intento.
Eis sentimos rumor, que nos molesta.

Assim monteiro, à caça pouco atento,
Do javardo e dos cães ouve o estrupido
E das ramadas o estalar violento.

Súbito vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados,
Ramos rompendo ao bosque denegrido.

“Ó morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O segundo, que tardo se julgava:
“Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados

“De Toppo nas refregas te observava!”
Porém, de todo já perdido o alento,
Numa sarça acolheu-se que ali stava.

Corria, enchendo a selva, em seguimento
De famintas cadelas negro bando,
Quais alões da cadeia ao todo isento

A sombra homiziada se enviando,
A fez pedaços a matilha brava,
E logo após levou-os ululando.

Então meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me à sarça, que se em vão carpia
Pelas roturas, que o seu sangue lava.

“Ó Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia eu ser-te acaso amparo certo?
Em mim por crimes teus que culpa havia?” —

Disse-lhe o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
Por golpes tantos, de que estás coberto?” —

Tornou-lhe: “Ó alma que dessa arte falas
E tu que o dano vês, que me separa,
Da fronde minha, agora amontoá-las

“Dignai-vos junto à rama, que as brotara.
Na cidade nasci que por Batista
Deixou prisco patrão, que da arte amara

“Sempre pelos efeitos a contrista.
E se do Arno na ponte não restasse
Um vestígio, que traz seu culto à vista

“Talvez ela à existência não tornasse,
E quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a os esforços malograsse.

“Na minha própria casa hei-me enforcado”. —



CANTO XIV

[ O terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sangüíneo. Deste e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa. ]

DE amor do pátrio ninho comovido,
Essas dispersas folhas reunindo,
À sarça as dei, que tinha a voz perdido.

Ao limite, dali, fomos seguindo,
Em que parte o recinto co’ terceiro,
Onde a justiça horrível stá punindo.

Para expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu digo que à charneca então chegamos,
De plantas nua em seu espaço inteiro.

Da dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como o fosso a torneia sanguinoso:
Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.

O plaino era tão árido e arenoso,
Como o que de Catão os pés outrora
Na jornada calcaram fadigoso.

Ó vingança de Deus, quem não te adora
Nos tremendos efeitos meditando,
Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!

De almas nuas eu via infindo bando,
Por modos diferentes torturadas,
Miseráveis, mesquinhas pranteando.

Jaziam sobre o dorso umas deitadas,
Outras, dobrando os membros, se assentavam,
Muitas andavam sempre aceleradas.

Maior a turba destas se mostrava,
Menor a que, prostrada no tormento.
Maior dor nos lamentos denotava.

Largas flamas com tardo movimento
Choviam do areal em todo o espaço,
Qual neve em serra, quando é mudo o vento.

Na Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos cair viu Alexandre outrora,
No chão ardendo livres de embaraço.

Que aos pés no solo os calquem sem demora
Suas falanges avisado ordena:
Matá-los um por um fácil lhes fora.

Assim baixava, para agravo à pena,
Lume eterno que à areia se prendia,
Como à isca a fagulha mais pequena.

Cada qual sem repouso se estorcia,
A um lado e a outro os braços revolvendo
A cada chama, que do ar chovia.

“Mestre” — falei — “que vais tudo vencendo,
Somente exceto a legião furente,
Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,

“Diz quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao parecer, o incêndio, e não domado
Pela chuva, já rápido, insolente?” —

Reconhecendo o próprio condenado
Que da minha pergunta fora objeto,
“Morto sou qual fui vivo!” clama irado.

“Que Jove canse o armeiro seu dileto,
De quem tomou fremente o agudo raio
Para em mim saciar rancor abjeto;

“Que os seus cíclopes sintam já desmaio
De Mongibello na oficina negra,
Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —

“Como fez na peleja lá de Flegra;
Que me fulmine de ódio e sanha cheio:
No gozo da vingança em vão se alegra”. —

Virgílio então, com voz, como não creio
Lhe ter ouvido, sonorosa e forte,
Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio

“Não mitiga a soberda a própria morte,
Sofre mor pena; igual não há castigo
Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —

Para mim se voltou; com gesto amigo
Falou: — “Dos Reis que Tebas sitiaram
Foi um; de Deus se declarara imigo.

“Os crimes seus no inferno se agravaram;
Já disse-lhe, as blasfêmias, os furores
Digno prêmio em seu peito lhe deparam.

“Vem agora após mim; pelos fervores
Não caminhes da areia incandescente;
Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —

Fomos andando, cada qual silente,
Até onde jorrar do bosque eu via
Rubro arroio, que lembro inda tremente.

Do Bulicame qual o que saía,
Das pecadoras em serviço usado:
Tal pela adusta areia este corria.

As margens e orlas são de cada lado
Feitas de pedra e assim também seu leito:
Caminho ali notei ao passo azado.

“De quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois que atrás deixamos essa porta,
A cujo ingresso todos têm direito,

“Não se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha que iguale a desta veia,
Em que a flama adurente fica morta”. —

O Mestre diz e assim desejo ateia
De rogar-lhe me preste esse alimento,
Que excitado, o apetite haver anseia.

“Do mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído país, Creta afamada.
Com seu rei foi do mal o mundo isento.

“Alça-se ali montanha outrora ornada
De fontes e verdor: chama-se Ida:
Erma está, como cousa desprezada.

“Foi ao filho pra berço preferida
De Réia, que abafava o seu vagido
Fazer mandando grita desmedida.

“Nas entranhas do monte um velho erguido
Está: voltando à Damieta as costas,
Como a espelho, olha Roma embevecido.

“De ouro faces e fronte são compostas,
De pura prata são braços e peito,
Enéias do busto as partes bem dispostas.

“De ferro estreme tudo o mais foi feito,
O pé direito exceto, que é de argila,
Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.

“Salvo do ouro, do mais sempre destila
De lágrimas por fenda crebro fio,
Que fura a gruta e rápido desfila.

“Aos negros vales vem correndo em rio,
Forma Stige, Aqueronte e Flegetonte,
Desce depois neste canal esguio

“Até do inferno o fundo, aonde é fonte
Do Cocito. O que o rio acaso seja
Verás: mister não é que ora te conte”. —

— “Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize, ó Mestre, a razão por que a torrente
Só neste abismo lôbrego se veja”. —

“É circular este lugar horrente,
E posto haja vencido extenso trato,
Descendo tu à esquerda, inteiramente

“Não hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não revele o teu rosto maravilha.
Novas cousas em vendo e estranho fato”. —

Ainda eu perguntei: — “Por onde trilha
O Flegetonte e o Letes? De um te calas,
E do outro a veia é dessa origem filha”. —

Tornou: — “Muito me agrada quanto falas;
Da água rubra o fervor, porém, solvera
Uma dessas questões, que me assinalas.

“Do inferno fora o Letes ver espera:
Na linfa sua as almas vão lavar-se
Depois que a penitência o perdão gera”. —

Disse depois: “É tempo de deixar-se
A selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela margem caminho há para andar-se.

Do fogo ali se extingue toda sanha”. —


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