sábado, 11 de agosto de 2012

Aspectos do Romance, Edward Forster, Parte III : AS PESSOAS


Retirado do Blogue :

Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise – Oficina de Criação Literária Clarice Lispector

 

RESENHA DE A HISTÓRIA, PARTE II DO LIVRO ASPECTOS DO ROMANCE DE EDWARD MORGAN FORSTER 

* Escrito em Português do Brasil


 Aspectos do Romance é um estudo sobre o romance. O autor garante não ter a pretensão de ser “científico”, por isso o título de “Aspectos”, mas de permitir ao leitor olhar de diferentes maneiras o romance e dar ao próprio romancista a oportunidade de ver o seu trabalho. A linguagem coloquial adotada resulta de a origem ter sido as conferências que ele realizou na Universidade de Cambridge ao suceder T.S.Eliot.
Edward Morgan Forster, mais conhecido por E. M. Forster, (1879 a 1970), inglês de família tradicional, orfão de pai aos dois anos de idade, foi educado pela mãe, com quem manteve ligação extremamente forte. Virgínia Woolf critica em seu diário o fato de ele, homem já maduro, refugiar-se com a mãe em Weybridge, uma velha, niquenta & severa, numa casa velha, a uma milha da estação.
Ele frequentou o King´s College, em Cambridge, onde conheceu as pessoas que formaram o o grupo artístico e literário Bloomsbury, cujos participantes eram chamados de Apóstolos, passando a fazer parte dele. O grupo ficou conhecido, também, como a máfia da intelectualidade, por usar rituais secretos. Após a morte da mãe, ele foi eleito membro honorário do King’s College, onde viveu até ao fim dos seus dias.
Escreveu vários livros, entre ensaios, contos e romances: Where Angels Fear to Tread, The Longest  Journey, Um quarto à vista,  Howard´s End e Passagem para a India, estes dois últimos objeto de belos filmes, Maurice e Artic Summer (incompleto). Publicou ainda três livros de contos: The celestial omnibus and other stories, The eternal moment and other stories, mais tarde reunidos num só volume, e postumamente The life to come and other stories. Dos 14 contos ali reunidos, apenas dois foram publicados antes da sua morte, pois assim como Maurice, a maioria dos contos explorava temas homossexuais.
Estudioso de Teoria Literária, seu livro Aspectos do Romance, razão desta resenha, foi publicado em 1927 e ficou célebre pela sua classificação das personagens em esféricas ou planas, tornando-se a sua obra teórica mais conhecida.
O primeiro aspecto considerado no livro é A História, aspecto fundamental de todo romance, segundo o autor. Para defender a sua tese ele faz uso de metáfora sonora ao estruturar os seus argumentos com base no tom de voz em que o leitor respondia a pergunta: O que é que um romance faz. Na verdade, por trás do tom de voz ele situava o leitor no seu contexto social, econômico e cultural, usando substantivos e adjetivos que não deixavam dúvidas sobre o sujeito da fala, nem sobre a sua relação de simpatia ou antipatia por ele. Assim, o leitor-motorista, cidadão comum, de recursos econômicos e culturais limitados, contava com o respeito e a admiração do autor ao responder, de forma plácida, que não sabia bem… que aquela era uma pergunta engraçada…, mas que ele supunha que o romance contava uma história. Por outro lado, o leitor-golfista, cidadão amealhado, arrogante e agressivo na resposta: Ora, conta uma história, é claro, pois assim era o seu desejo, dele e da mulher, diga-se de passagem, sendo tal desejo soberano, nada mais podendo lhe interessar, embora dispusesse de recursos social e econômico para maior refinamento cultural, e ainda exibindo profundo desprezo pelas artes, Você pode ficar com a sua arte, a sua literatura, a sua música, desde que me dê uma boa história, desnecessário seria dizer o quanto o autor o achava detestável e ao mesmo tempo temia tal leitor, pois para ele, E.M.Forster, a arte valia à pena pela arte. E, por fim, o tipo leitor-beletrista, em que ele mesmo se inclui, que cheio de desânimo e pesar responde: Oh, sim, meu caro, sim, o romance conta uma história, pois ele bem que gostaria de que assim não fosse, que o romance pudesse ser algo diferente, como por exemplo, melodia, percepção da verdade, e não esta baixa forma atávica.
Pouco importa o lugar que o sujeito ocupa na sociedade, enquanto leitor desejante há um máximo divisor comum que une a todos ao ler um romance: a  história que ele conta. Mas é do lugar de leitor-beletrista, daquele que lamenta que assim seja, que ele vai mostrar o que realmente significa a história no romance.
Por que lamenta o beletrista? Afinal, a unanimidade deveria ser suficiente para acalmá-lo. Não, não, não, diz ele, se forem retirados da história todos os seus refinamentos pouco resta para admirar. O que mantêm a história viva desde o homem de Neanderthal, quando ela era contada ao redor de uma fogueira, é o desejo dos ouvintes de saber o que vai acontecer depois, tal qual o esposo de Sherezade nas Mil e uma noites, e outras tantas audiências de seu tempo – do autor – para quem a curiosidade primitiva ainda prevalece sobre qualquer julgamento literário. Assim, ele resume que a história tem apenas um mérito: fazer a audiência desejar saber o que acontece depois. E, inversamente, pode ter uma única falta: fazer com que o auditório não queira saber o que acontece depois.
Apesar disso ele reconhece que a história tem muito a ensinar. E começa por apresentar a sua conexão com a vida cotidiana, usando o sentido de tempo e o senso de valoração sempre presentes nela: … a vida cotidiana, qualquer que seja, é praticamente composta de duas vidas – a vida no tempo e a vida dos valores; e nossa conduta revela uma dupla fidelidade: “ Eu a vi só por cinco minutos, mas valeu a pena”. Igualmente, o papel da história é narrar a vida no tempo, enquanto que o romance como um todo –se ele é um bom romance – tem o papel de agregar-lhe valores, a partir de alguns recursos ficcionais, prestando, assim, dupla fidelidade. E reforçando o seu argumento ele diz que no romance a fidelidade ao tempo é imperativa, mais do que na vida cotidiana, quando as pessoas chegam a negar que o tempo existe, que até podem esquecer que o relógio está tique-taqueando, e agirem segundo tal pensamento. Um romancista não pode fazer assim, ele jamais poderá ignorar o tempo dentro da textura do seu romance. O escritor pode usar de muitos artifícios para tentar esconder o tempo, assim como Proust, Emily Brontë e Sterne o fizeram, mas nenhum deles contradiz a tese do autor de que : a base de um romance é uma história, e a história é uma narrativa de acontecimento dispostos em sequência no tempo.
Ainda no desenvolvimento da sua tese ele passa a analisar as obras de alguns escritores. Começa com Sir Walter Scott, escritor inglês ( 1771-1832), criador do genuíno romance histórico. Antes dele alguns autores haviam procurado essa modalidade literária, mas o público e a crítica não compreenderam a intenção.A análise crítica do autor é bastante severa: Não sabe construir: não possui nem despreendimento artístico, nem paixão. Apesar disso, ele reconhece a fama do escritor e a atribui a dois fatores. O primeiro deles, a razões sentimentais, porque ouviram na juventude a sua leitura em voz alta, associando-a com lembranças de momentos felizes. E o segundo, porque ele sabia contar uma história.Tinha o primitivo poder de conservar o leitor em “suspense e brincar com a sua curiosidade.O texto analisado é O Antiquário que ele esmiuça, apresentando diversas falhas, mas acaba por concluir que é um livro em que a vida no tempo é celebrada instintivamente pelo romancista.
Em seguida, ele faz breve comentário sobre The Old Wives´Tale, de Arnold Bennett, publicado em 1908 com grande sucesso, considerado uma obra prima. Neste romance o tempo é o verdadeiro herói,.o processo de envelhecimento dos seus personagens é surpreendente, até o cão da casa velho e reumático arrasta-se para ver se resta alguma coisa no prato. E ele reconhece que é um livro muito forte, sincero e triste, mas contesta a sua grandeza, grandeza que ele vai encontrar em Guerra e Paz de Tolstoi. Segundo  Forster, ali não só o tempo, mas o espaço, também, foi contemplado, podendo até ser dito que o espaço é que é o senhor do romance, espaço da imensa área da Rússia, das suas florestas, das suas pontes e rios congelados, dos jardins, estradas e campos.
E para concluir a sua argumentação ele diz que a história, além de dizer uma coisa depois da outra, acrescenta algo por causa de sua conexão com uma voz. Assim, como repositório de uma voz, ela pede para ser lida em voz alta, não pela cadência ou melodia, para estas o olho é suficiente, por mais incrível que pareça,  mas dada a sua primitividade, antes mesmo da descoberta da leitura, a “voz” que fala, a voz do narrador da tribo, agachado no meio da caverna atrai o que há de primitivo em nós, exigindo que nos transforme de leitores em ouvintes.
Por todos os argumentos apresentados é que ele insiste para que os ouvintes de sua conferência não respondam com a inocência do leitor-motorista quando lhe perguntarem o que um romance faz, porque eles não têm esse direito, e eu acrescento, não têm mais a inocência daquele leitor; também não respondam tal e qual o leitor-golfista, porque a eles não cabem o perfil porque têm muito mais sabedoria; digam assim como ele, e não tenham dúvida de que estarão certos, embora um pouco tristes, pesarosos: sim – oh, meu caro, sim -, o romance conta uma história.
Edward M. Forster, com certeza, não é um ensaísta-conferencista plácido, para usar o seu adjetivo. A medida que lemos o seu texto surpreendemo-nos com o tom contundente, margeante da grosseria, algumas vezes. De qualquer forma, a geração dos anos vinte foi uma geração vanguardista que se caracterizou pela quebra de padrões no fazer literário: James Joyce no ápice da pirâmide, Virgínia Woolf uma das suas mais brilhantes seguidoras. Além disso, pertencer ou ter pertencido ao Bloomsbury, grupo intelectual inglês de grande expressão, já lhe dava a licença poética necessária para se expressar como bem quisesse, até para fazer citações pessoais do tipo: Poderia ter sido um escritor mais famoso se tivesse escrito e publicado mais, mas o sexo não permitiu esta última. (Wikipédia). Afinal, o máximo divisor comum é eles serem todos herdeiros de Flaubert na busca por um escrever absoluto, sem amarras, medidas ou fronteiras:
   O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna do seu estilo, como a terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver. As obras mais belas são as qu têm menos matéria; mais a expressão se aproxima do pensamento, mais a palavra cola em cima e desaparece, maior é a beleza.
Assim, não poderia deixar de ser triste a resposta do leitor-escritor-beletrista: Sim, o romance conta uma história.
                                                                 Jaboatão dos Guararapes, 08 de março de 2009          
                                                                                               Lourdes Rodrigues  


Na Parte III de Aspectos do Romance, Edward Forster aborda tópico importante desse tipo de narrativa: as personagens. No texto, entretanto, ele parece ter esquecido a geometria euclidiana, especialmente no que se refere ao famoso princípio de que a menor distância entre dois pontos é uma reta, usando de volteios entediantes ao argumentar sobre o tema. Tal atitude deixou-nos algumas vezes perdidos, carecendo de retorno ao porto da partida, única e confortável certeza em meio a essa viagem.
 Já no início do ensaio/palestra ele altera o nome personagem para pessoas sob o argumento de que a experiência com animal não teve êxito, em vista do desconhecimento até aquele momento de sua psicologia. Talvez ele devesse ter relido (com certeza leu algum dia) os pensamentos de Confúcio, pelo menos o primeiro dos seus mandamentos que diz A vida é realmente simples. Nós é que insistimos em torná-la complicada. Ora, personagem é sinônimo de pessoa, e mesmo quando é objeto, animal ou vegetal, seus sentimentos, suas reações são sempre antropomorfizadas.
 Apesar disso, o texto não perde em qualidade, valendo a pena mergulhar no labirinto e seguir as pistas de Ariadne para não perder o caminho de volta.
 Forster diz que a pergunta que vai acompanhar o leitor agora não será mais o que vai acontecer depois, tão presente na história que se conta, conforme visto no capítulo anterior. Ela será substituída por a quem aconteceu o fato que está sendo narrado, exigindo do leitor além de curiosidade, muita imaginação e inteligência.
 No processo de criação de personagens ele vê um facilitador para o romancista que é a afinidade pré-existente entre eles, derivado do fato de ambos pertencerem ao humano, diferentemente do que ocorre em outras formas de arte. Pintor, escultor e poeta dispensam tal ligação porque eles não precisam representar seres humanos, não é uma condição imposta pela sua arte, a menos que o desejem. O músico mesmo que ele quisesse jamais poderia fazê-lo. Contrariamente aos seus colegas, o romancista arranja uma porção de massas verbais, descrevendo grosso modo a si mesmo (grosso modo, as sutilezas virão mais tarde), dá-lhes nomes e sexos, determina-lhes gestos plausíveis e as faz falar por meio de aspas e talvez comportarem-se consistentemente. Essas massas verbais são suas personagens.  
 Prosseguindo, o autor diz que o processo de criação dos personagens não é frio, podendo acontecer em delirante excitação. E sempre resultará da visão que o criador tem das pessoas e dele próprio, modificada por outros aspectos do seu trabalho, ponto objeto de investigação futura, segundo ele, pois no momento lhe interessa ocupar-se da relação dos personagens com a vida real.
 E para adentrar no processo de criação ele começa por perguntar qual a diferença entre as pessoas num romance e as pessoas como o romancista ou como vocês, ou como eu, ou como a Rainha Vitória?Respondendo ele próprio que existe diferença obrigatória. Se o personagem é igual à Rainha Vitória, por exemplo, ele é a rainha e o romance ou o que se referir a esse personagem tornar-se-á Memória, porque ele se baseia em fatos, enquanto o romance não tem tal compromisso, ele se baseia em fatos mais ou menos reais às vezes. Para o historiador interessam as ações dos homens, e mesmo o caráter desses homens é deduzido dos seus feitos. A vida oculta é, por definição, velada e, quando se mostra através de sinais exteriores, não é mais oculta, já entra no domínio da ação. Ao romancista cabe revelar essa vida oculta, contar-nos mais sobre a Rainha Vitória do que se poderia saber e, desse modo, compor uma personagem que não é a rainha Vitória da História.
 Forster cita crítico francês que afirmou ter o ser humano dois lados, um apropriado à história e outro à ficção: Tudo que é observável num homem, quer dizer, suas ações e a parte de sua existência espiritual que pode ser deduzida das suas ações – cai no domínio da história. A parte romanesca que inclui as paixões genuínas, os sonhos, sentimentos de alegria, tristeza pertencem à ficção.
Para distinguir o real da ficção ele recorre aos chamados fatos principais na vida humana: nascimento, alimentação, sono, amor e morte. Começa por priorizar nascimento e morte, e diz tais fatos são conhecidos apenas através de informações, pois ninguém lembra como nasceu, menos ainda quando morreu, movemo-nos entre duas obscuridades, diz ele. Ao romancista, entretanto, tudo é permitido, pois ele conhece a vida oculta. Quanto tempo depois do nascimento ele tomará suas personagens? Até que ponto, na direção do túmulo, ele as acompanhará? E o que dirá, ou fará sentir, sobre essas duas experiências esquisitas?
 Longa e labiríntica caminhada ele faz pelos fatos principais da vida humana. A alimentação é um elo entre o sabido e o esquecido, diz ele, muito parecido com o nascimento, alem de restaurar as forças tem um lado estético, pode ter gosto bom ou ruim, e o que acontecerá nos livros essa mercadoria de duas faces?, pergunta.  O sono, em média, ocupa um terço do tempo de qualquer pessoa, e nos leva a um mundo pouco conhecido, e nos parece, ao deixá-lo, ter sido em parte esquecimento, em parte uma caricatura deste mundo e, em parte ainda, uma revelação. Sem querer discutir a natureza do sono ou dos sonhos, Forster diz que a História não se ocupa com esse terço e a ficção, pergunta ele, tomará uma atitude semelhante? Enfim, chega ao amor. Aqui ele faz uma longa digressão sobre o tema, concluindo que os seres humanos no estado de amor tentam receber e dar alguma coisa, e este duplo objetivo torna o amor mais complicado que o alimento e o sono. Quanto tempo ocupa o amor na vida das pessoas? Ele pode imiscuir-se no sono, na alimentação, mas Forster diz duvidar que um homem tenha comunhão emocional com qualquer objeto amado mais que duas horas por dia.
 De igual constituição, o romancista nasce, alimenta-se, dorme, ama, e ainda, toma a caneta em sua mão, penetra no estado de anormalidade que convém chamar inspiração, e tenta criar personagens. Em que medida os personagens criados pelos romancistas diferem dele, diferem dos seres que habitam a terra? Forster elenca uma série de divergências, começando pelo nascimento. Quando um bebê aparece num romance, tem o ar de quem foi enviado pelo correio: é entregue. Uma das personagens mais velhas é quem vai apanhá-lo e apresentá-lo ao leitor, depois do que ele desaparece até que possa participar da ação. A morte tem um tratamento que dá a impressão de que o romancista acha esse tema congenial, pois permite a ele encerrar com elegância um livro, afirma Forster. O alimento aparece apenas socialmente, reunindo personagens que o saboreiam, mas não o digerem. O sono também é tratado de forma perfunctória, sem qualquer indício de esquecimento ou do verdadeiro mundo dos sonhos. Estes são ora lógicos, ora mosaicos compostos por pequenos fragmentos positivos do passado e do futuro. Aqui se percebe a influência do pensamento freudiano, resultado da publicação na Inglaterra de A Interpretação dos Sonhos, pela Hogarth Press de Virgínia e Leonard Woolf.
 O amor ocupa espaço enorme nos romances. Para começar ele diz que o romancista quando deixa de desenhar os seus personagens e começa a criá-los, o amor em qualquer de seus aspectos ou em todos, torna-se importante em sua mente e, sem querer, faz suas personagens exageradamente sensíveis a ele – exageradamente, no sentido de que, na vida, não os preocuparia tanto. Segundo Forester, os personagens são reflexos do estado de espírito do romancista no processo de composição, e a predominância do amor é em parte por conta disso. Outra razão, é que o amor, como a morte, é congenial (essencial) para um romancista, pois ele também permite terminar o livro de modo adequado.  O autor pode fazê-lo durar para sempre, e seus leitores facilmente aceitarão isso, porque uma das ilusões ligadas ao amor é que ele será permanente: digo será em lugar de tem sido. (…)Qualquer emoção forte traz consigo a ilusão de permanência, e os romancistas agarram-se a isso.Em geral, terminam seus livros com casamento, ao que não nos opomos, pois emprestamos a eles nossos sonhos.
 Enfim, para concluir o seu pensamento, ele admite que o homo fictus seja mais indefinível do que o seu primo homo sapiens, por não ser possível universalizar, vez que é produto de centenas de mentes distintas de romancistas que utilizam em seu processo criativo os mais divergentes métodos de construção. Mesmo assim, ele se arrisca a dizer que ele (homo fictus) nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está incansavelmente ocupado com relações humanas e – o mais importante – podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer um de nossos semelhantes, porque seu criador e narrador é um só.
 Daí em diante ele passa a analisar um personagem de Daniel Defoe, Moll Flanders, porque ela enche o livro que leva o seu nome, ou ainda, permanece só como uma árvore num parque, de modo que podemos vê-la sob cada um de seus aspectos, e não somos incomodados pela vegetação que a cerca. Ele chama de vegetação aos outros personagens que atuam com ela, os vários maridos/amantes que ela teve e nenhum deles foi capaz de lhe roubar a cena. Segundo Forster, Defoe fez uma tentativa de enredo tendo o irmão-marido dela como centro, mas ele é muito simplório; e um outro marido, o legal, desaparece da cena sem deixar vestígio. Nada importa senão a heroína. (…) E tendo dito que ela parece absolutamente real sob todos os pontos de vista, devemos nos perguntar se a reconheceríamos caso a encontrássemos na vida cotidiana. (…) Poderemos, então, dar a resposta habitual encontrada em todos os manuais de literatura e que sempre deveria ser dada em exames, a resposta estética, no sentido de que um romance é uma obra de arte, com suas próprias leis, que não são as da vida diária, e que uma personagem dum romance é real quando vive de acordo com tais leis. (…) São reais não por serem como nós (embora possam sê-lo), mas porque são convincentes.
 Após dissertar sobre a questão de os personagens serem tirados da vida real ou não, o autor passa a analisar as dificuldades dos escritores para a caracterização. Dois expedientes são apontados por Forster como facilitadores dessa tarefa: o uso de diferentes tipos de personagens; e o ponto de vista.
 No primeiro, relativo ao uso de diferentes tipos, ele divide as personagens em planas  e redondas. A tradutora Maria Helena Martins, em nota de rodapé, diz que essa classificação das personagens em planas e redondas foi a maior contribuição de Forster para a literatura. As planas, chamadas de humorous no século XVII, às vezes tipos, às vezes caricaturas. Em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade; quando há mais de um fator, atingimos o início da curva em direção às redondas. Entre as vantagens de se usar personagens planas estão a de elas poderem ser reconhecidas de imediato pelo olho emocional do leitor  e a de serem facilmente lembradas por ele. Permanecem inalteradas em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias, movendo-se através delas. (…) Nós todos queremos livros que perdurem, que sejam refúgios e que seus habitantes sejam sempre os mesmos, e as personagens planas tendem a justificar-se por causa disso.
 Os críticos, entretanto, nem sempre concordam com tal, ponto de vista, diz o autor. E cita crítico inglês que fez ácidos comentários sobre a obra de D,H.Lawrence, por ele não conceber as complexidades da mente humana comum; seleciona, para fins literários, duas ou três facetas de um homem ou de uma mulher,; em geral, os mais espetaculares e, por isso mesmo, proveitosos ingredientes de sua personalidade, desprezando todos os outros.  Nenhum ser humano é simples, diz Forster, mas o romance que tem alguma complexidade requer personagens planas e redondas,  e o resultado de seu entrechoque assemelha-se à vida com mais exatidão.(…) …devemos admitir que as pessoas planas não são, em si, realizações tão notáveis quanto as redondas e que também são melhores quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica tende a tornar-se enfadonha. (…) Só as pessoas redondas podem atuar tragicamente por qualquer espaço de tempo e inspirar-nos qualquer sentimento, exceto o de humour e adequação. (…) O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda. (…) Todas as personagens de Dostoievski são redondas, diz ele.
 O outro expediente utilizado pelo escritor e mencionado por Forster refere-se ao ponto de vista a partir do qual a história é contada.  De acordo com Percy Lubbock, toda a intricada questão do método, no ofício da ficção, é governada pela questão do ponto de vista – a posição do narrador em relação à história. Em seu livro The Craft of Fiction, editado no Brasil com o título de A técnica da ficção,  ele diz que o romancista pode descrever as personagens do ponto de  vista exterior, seja como um espectador parcial ou imparcial ou assumir a onisciência e descrevê-las do ponto de vista interior ou ainda colocar-se no lugar de uma delas e fingir estar no escuro, em relação aos motivos das outras ou mesmo assumir atitudes intermediárias. Forster diz que os seus seguidores certamente vão conseguir estabelecer um fundamento certo para a estética da ficção, mas ele concorda apenas que toda questão de método é resolvida pela habilidade do escritor em fazer o leitor aceitar o que ele diz e não pelo uso de fórmulas. Lubbock, segundo ele, admite e admira tal poder no escritor, mas coloca-o nas bordas do problema e não no centro como o próprio Forster o coloca. E ele cita como exemplo Dickens, em Bleak House , que habilmente usa no primeiro capítulo narrador onisciente, no segundo, narrador parcialmente onisciente, no capítulo seguinte a personagem tem o comando, comando que o criador poderá tomar a qualquer momento das suas mãos, e seguir ele mesmo tomando notas, numa lógica absolutamente fragmentária, pouco importando as mudanças de pontos de vista. Para Forster, os leitores não fazem qualquer objeção a essa mistura de pontos de vista, que isto incomoda mais aos críticos literários do que a eles. Outro exemplo de variação de ponto de vista citado é o do romance Os Moedeiros Falsos  de André Gide – escritor obsessivo com a técnica, cuja lógica é fragmentária. Ora o narrador é onisciente, fica por trás e explica tudo, ora ele é parcialmente onisciente, ora é dramático e deixa a história ser contada pelos personagens. A diferença entre as duas narrativas reside em que as variações de pontos de vista em Dickens são instintivas, e em Gide são sofisticadas, com o autor denunciando o tempo inteiro o seu interesse pelo método. Por esta razão ele considera que a obra de Gide, embora  esteja entre as mais interessantes obras modernas, ela não se inclui entre as vitais, razão porque ele não pode aplaudi-la irrestritamente. Ele ainda cita Guerra e Paz  como exemplo de obra vital que nos transporta através da Rússia onisciente, semi-onisciente, dramatizada aqui ou acolá, como inspira o momento – e no final nos o aceitamos completamente. Mr.Lubbock não, é verdade: grande como considera o livro, considerá-lo-ia ainda maior se possuísse um ponto de vista; ele sente que Tolstoi não deu tudo o que poderia dar.
 Para Forster, as regras do jogo da escrita não são assim. O romancista pode mudar o seu ponto de vista, desde que obtenha o resultado esperado. E ele estabelece um paralelo disso com a própria vida; Somos mais estúpidos em algumas ocasiões que noutras; podemos penetrar na mente das pessoas às vezes, mas não sempre, porque o nosso próprio intelecto cansa; e esta descontinuidade empresta, no decorrer do tempo, variedade e colorido às nossas experiências.

Edward M Forster é um personagem redondo, com certeza, ele nos surpreende a cada página. Convida-nos para uma viagem difícil, árida,  maçante às vezes, mas ao final dela sentimos um prazer imenso, pelas muitas descobertas que nos propicia. Às vezes ficamos mareados com os seus volteios, mas logo passa e já ficamos prontos para seguir viagem outra vez com ele.

                          Jaboatão dos Guararapes, 07 de abril de 2009
                                                   Lourdes Rodrigues

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